24 de junho de 2013
AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO E A GRANDE MÍDIA
Apesar da
proximidade cronológica, parece razoável observar que o estopim para as
manifestações populares que estão ocorrendo no país foram o aumento das tarifas
do transporte coletivo e a repressão violenta da polícia (vitimando, inclusive,
jornalistas no exercício de sua atividade profissional) – não só à primeira
passeata realizada em São Paulo, mas também à manifestação realizada antes da
abertura da Copa das Confederações, em Brasília. A partir daí, um conjunto de
insatisfações que vinha sendo represado explodiu.
A primeira
reação da grande mídia, bem como das autoridades públicas, foi de condenação
pura e simples das manifestações que, segundo eles, deveriam ser reprimidas com
ainda maior rigor. No entanto, à medida que o fenômeno se alastrou, autoridades
e mídia alteraram a avaliação inicial.
A grande
mídia, então, passa a cobrir os acontecimentos como se fosse apenas uma
observadora neutra, que nada tem a ver com os fatos que desencadearam – para o
bem ou para o mal – todo o processo.
CENTRALIDADE
DA MÍDIA
Nas
sociedades contemporâneas, apesar da velocidade das mudanças tecnológicas,
sobretudo no campo das comunicações, a centralidade da mídia é tamanha que nada
ocorre sem seu envolvimento direto e/ou indireto.
Qual teria
sido esse envolvimento no desencadeamento das atuais manifestações?
Um primeiro
aspecto chama a atenção. Pelo que se sabe, as manifestações tem sido convocadas
por meio de redes sociais. Isto é, através de um sistema de comunicação
independente do controle da grande mídia.
Na verdade,
a se confirmar que a maioria dos participantes é de jovens (em Brasília, um dos
“convocadores” da “Marcha do Vinagre” tem apenas 17 anos), trata-se de um
segmento da população que se informa prioritariamente pelas redes sociais na
internet e não pela grande mídia – jornais, revistas, radio, televisão.
Apesar
disso, um aspecto aparentemente contraditório, mas fundamental – revelado
inclusive em cartazes dispersos nas manifestações – é que os manifestantes se
consideram “sem voz pública”, isto é, sem espaço para expressar e ter a voz
ouvida.
Desnecessário
lembrar que a grande mídia ainda exerce, na prática, o controle do acesso ao
debate público, vale dizer, das vozes que se expressam e são ouvidas. Além
disso, a cultura política que vem sendo construída e consolidada no Brasil,
pelo menos desde que a televisão se transformou em “mídia de massa” hegemônica,
tem sido de desqualificação permanente da política e dos políticos.
E é no
contexto dessa cultura política que as novas gerações estão sendo formadas –
mesmo não se utilizando diretamente da velha mídia. Emerge, então, uma questão
delicada.
A MÍDIA E O
SYSTEM BLAMEIndependentemente das inúmeras e verdadeiras razões que justificam a expressão democrática de uma insatisfação generalizada por parte de parcela importante da população brasileira, não se pode ignorar o papel da grande mídia na construção dessa cultura política que desqualifica sistematicamente a política e os políticos.
E mais
importante: não se pode ignorar os riscos potenciais para o regime democrático
da prevalência dessa cultura política. Recorri inúmeras vezes, ao longo dos
anos, a uma arguta observação da professora Maria do Carmo Campello de Souza
(já falecida) ao tempo da transição para a democracia, ainda no final da década
de 1980.
Em capítulo
com o título "A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles",
publicado em livro organizado por Alfred Stepan Democratizando o Brasil (Paz e
Terra, 1988), ela discute, dentre outras, a questão da credibilidade da
democracia. Nas rupturas democráticas, afirma ela, as crises econômicas têm
menor peso causal do que a presença ou ausência do system blame (literalmente,
"culpar o sistema"), isto é, a avaliação negativa do sistema democrático
responsabilizando-o pela situação.
Citando
especificamente os exemplos da Alemanha e da Áustria na década de 1930, lembra
Campello de Souza que "o processo de avaliação negativa do sistema
democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa
do regime democrático, eles já se encontravam reduzidos a uma minoria para
serem capazes de impedir a ruptura". A análise da situação brasileira, há
mais de duas décadas, parece mais atual do que nunca. A contribuição insidiosa
da mídia para o incremento do system blame é apontada como um dos obstáculos à
consolidação democrática.
Vale a pena
a longa citação:
“A
intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro
requer um estudo linguístico sistemático sobre o "discurso adversário"
em relação à democracia, expresso pelos meios de comunicação. Parece-nos
possível dizer (...) que os meios de comunicação tem tido uma participação
extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (...).
Deve-se
assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem
pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre
presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à
política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria
estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7).
(...) O teor
exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por
estabelecer junto à sociedade (...) uma ligação direta e extremamente nefasta entre
a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes
democráticos.
(...) A
despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe
política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de
comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos
de sua crítica, poupam outros setores (...). Tem-se muitas vezes a impressão de
que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou
do Congresso (...). (pp.588-9, passim).
AVANÇOS E
RISCOS
As
manifestações populares devem, por óbvio, ser vistas por aqueles em posição de
poder como uma oportunidade de avançar, de reconsiderar prioridades e políticas
públicas. Do ponto de vista da grande mídia, é indispensável que se reflita
sobre o tipo de cobertura política que vem sendo oferecida ao país.
Encontrar o
ponto ideal entre a fiscalização do poder público e, ao mesmo tempo, contribuir
para o fortalecimento e a consolidação democrática, não deveria constituir em
objetivo da grande mídia? A quem interessa a ruptura democrática?
Apesar de
ser um tema delicado e difícil – ou exatamente por essa razão – é fundamental
que se considere os limites entre uma cobertura sistematicamente adversária da
política e dos políticos e os riscos de ruptura do próprio sistema democrático.
A ver.
Venício A.
de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e
Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos
Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço
dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros
livros.
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