5 de novembro de 2013

 

Mariluce Moura e Tessa Moura Lacerda perguntam: Por quê, para quê?

Texto publicado no jornal A Tarde (sexta, 01.11.2013):

Por quê? Para quê?
Autores: Mariluce Moura, jornalista, viúva de Gildo Macedo Lacerda e Tessa Moura Lacerda, professora do Departamento de Filosofia da USP, filha de Gildo Macedo Lacerda.

Causa-nos alívio que o novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entenda que a anistia brasileira deve se submeter às convenções internacionais que tratam do tema. Afirma, assim, que neste país os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e nos informa que legalmente não se sustenta a extensão do benefício da lei 6.683 de 28 de agosto de 1979, a da anistia, aos responsáveis pelas gravíssimas violações dos direitos humanos durante a ditadura civil-militar de 1964-1985. Amplia nossas esperanças numa nova fase da luta por justiça contra os crimes da ditadura a notícia que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrará com uma nova ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a lei da anistia.
Essas considerações vêm a propósito de um crime impune há 40 anos. Em 28 de outubro de 1973, Gildo Macedo Lacerda, 24 anos, morreu em dependências do estado brasileiro, vítima das monstruosas torturas a que foi submetido ao longo de seis dias, primeiro no quartel do Barbalho, em Salvador, e depois na sede do DOI-CODI, em Recife. A morte de Gildo Macedo Lacerda e a de José Carlos da Mata Machado compõem o aterrador capítulo final de uma história que mistura perseguição implacável a membros da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) com a covarde colaboração de um ex-militante do partido na liquidação da organização, em 1973. O saldo dessa torpe combinação inclui as mortes de Paulo Stuart Wright, Eduardo Collier Filho, Humberto Câmara Neto, Fernando Santa Cruz e Honestino Guimarães.

Os retalhos dessa história emergiram da investigação incansável de pessoas e grupos que, desde os anos sombrios da ditadura, determinaram-se a resgatá-la. Foi de seu trabalho que nasceram a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o Grupo Tortura Nunca Mais, nos anos 1980. É também ele que está na raiz da política de reparação das vítimas da ditadura do governo FHC, com a criação da Comissão da Anistia e a elaboração da lista oficial de mortos e desaparecidos políticos. E é esse mesmo empenho de tantos, orientado pela busca da memória, da verdade e da justiça que se verá gravado nas fundações da Comissão Nacional da Verdade – e nas dezenas de comissões que desde 2012 se multiplicam pelo país. Não fosse essa formidável energia despendida na busca dos fatos, talvez estivéssemos presos ainda aos enredos kafkianos dos comunicados da ditadura.
No caso de Gildo, estudante de economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) cassado pelo decreto 477, líder estudantil, vice-presidente da UNE em 1969-1970 e dirigente da APML, forçado à vida clandestina desde 1970 para escapar aos horrores da ditadura que afinal o aniquilou, a morte foi informada numa ficção aviltante que a tevê e a imprensa amordaçadas tiveram que divulgar em 31 de outubro e em 1º de novembro de 1973. Segundo ela, Gildo e José Carlos confirmaram um encontro marcado com o militante “Antonio” em 28 de outubro, na esquina da avenida Caxangá com a rua General Polidoro, centro de Recife. Ao vê-los no local e perceber o movimento dos agentes, “Antonio”, aos gritos de “traidores”, abrira fogo contra os companheiros. Ferido ele próprio, fugira. Esse “teatro da Caxangá” se destinaria a encobrir a morte de Paulo Wright, dirigente da APML.

Com a morte anunciada, a família esperava a devolução do corpo de Gildo – isso não aconteceu jamais. Sobre o primeiro crime, a ditadura cometeu um segundo, a ocultação de cadáver. Por quê? Para quê? A prisão de Gildo em 22 de outubro fora testemunhada por outros seis presos reunidos na Superintendência da Polícia Federal, em Salvador, incluindo nós ambas – uma, presença consciente e integral, a outra, presença, ainda sutil, oculta, embrionária.
Antígona, personagem que dá nome à famosa tragédia de Sófocles, em sua recusa a obedecer à lei do tirano Creonte, realiza como pode os ritos fúnebres em honra de seu irmão, jogando com as próprias mãos sobre o corpo insepulto uma fina camada de terra. Porque para ela são injustas as leis que mandam deixar Polinices sem túmulo. Mas negar os ritos fúnebres a uma pessoa morta é mais que uma injustiça: é uma monstruosidade. É privar aqueles que têm o dever imemorial de enterrar seus entes queridos de sua humanidade, daquilo que os distingue enquanto seres humanos. É, assim, desumano. Inumano. Essa monstruosidade marca a ditadura brasileira.

E 40 anos depois seguimos exigindo o esclarecimento das circunstâncias da morte de Gildo Macedo Lacerda; a devolução de seus restos mortais; a identificação e a punição dos responsáveis por seu assassinato. Trata-se de uma questão de justiça.

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