24 de fevereiro de 2014

 

Emiliano José defende que violência não pode ser a saída

A partir do apelo insano à violência da apresentadora do SBT, Raquel Sheherazade, contra o ladrão negro e jovem espancado nas ruas do Rio de Janeiro, o jornalista Emiliano José faz uma reflexão no artigo "O ovo da serpente", publicado no jornal A Tarde: “Será possível acreditar que mais prisões, mais pelourinhos espalhados pelos justiceiros, mais matança de jovens negros e pobres nas periferias por milícias, vão resolver alguma coisa? Será que esse racismo óbvio, essa sobrevivência da Casa-Grande, irá construir uma sociedade fraterna? Com certeza, não. A escravidão acabou.  LEIA NA ÍNTEGRA:

O ovo da serpente

 Emiliano José*
Se não tomarmos cuidado, se insistirmos apenas no pessimismo da inteligência, se descuidarmos do otimismo da vontade, se não atentarmos para a ação política, eis-nos naufragados no desânimo, na desesperança, na descrença do gênero humano. Como creio na política como elemento civilizatório, essencial à vida racional, penso necessário refletir sobre valores, sobre a cultura, sobre a emergência de pensamentos tão cheios de ódio, tão ofensivo aos pobres, aos marginalizados, aos excluídos, tão próprios de uma sociedade marcada pelo individualismo e pelo desprezo ao outro.

 O capitalismo nos ensinou e nos ensina a pensar em cada um de nós. Nada de pensar no outro. A não nos imaginarmos numa vida em comum. A voltarmo-nos sempre para o indivíduo. Como se não existisse sociedade. E, com isso, a não procurar causas para os acontecimentos. É um salve-se quem puder permanente. O homem como lobo do homem, típico do raciocínio hobbesiano. O Brasil debate-se com uma discussão dessa natureza: há que se condenar, sem apelação, os desenquadrados, os fora-da-lei, os que fogem dos critérios da normalidade de qualquer natureza.
E o que é o normal? De perto, alguém é normal? Convide-se todos a lerem “O alienista”, de Machado de Assis. Nem sei se adianta muito esse convite. Há que se refletir sobre um pensamento racista, à Casa Grande, ainda fortemente presente entre nós. Alguns setores da sociedade brasileira preferem o agigantamento de cadeias a quaisquer políticas públicas capazes de enfrentar as nossas gritantes desigualdades, políticas aliás iniciadas desde 2003, como o Bolsa Família, programa hoje copiado até por países desenvolvidos, tal a sua eficácia.

A jornalista e apresentadora do SBT Rachel Sheherazade, sem quaisquer rodeios, justificou a ação de justiceiros – e tem palavra mais imprópria neste caso? – contra um jovem negro de 15 anos violentamente espancado, orelha arrancada, nu e acorrentado a um poste com uma trava de bicicleta, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Onde posso, destaco o fato de que país nenhum passa incólume por mais de 350 anos de escravidão. Há muitos saudosos da escravidão. Há muitos sentados à varanda da Casa-Grande, melancólicos diante da falta do pelourinho.

 Sheherazade disse que a atitude dos vingadores era até compreensível. Que o contra-ataque aos bandidos, a expressão é dela, era uma defesa coletiva. E conclamou aos defensores dos direitos humanos apiedados do marginalzinho – a expressão é dela –, preso ao poste, a participar da campanha “adote um bandido”. Ela expressa um sentimento presente na sociedade brasileira, lamentavelmente. O que nos leva à conclusão de que é absolutamente essencial travarmos um combate de valores, um combate cultural no País.

Os consumidores de crack são condenados à condição de bandidos automaticamente. Viraram uma perigosa praga nacional. É a droga do pobres, e por isso denominada epidêmica. Não é que o álcool seja epidêmico. Não é que o álcool cause tanto prejuízo aos cofres públicos, ao sistema público de saúde. Não. O álcool pode ser objeto de intensa publicidade, e nada acontece. Como não acontece nada aos fumantes das muitas marcas de cigarro, e que mata tanta gente todo ano com as mortíferas substâncias nelas contidas. Os muitos fármacos legais não são menos letais. A repressão e a condenação são seletivas.
Será possível acreditar que mais prisões, mais pelourinhos espalhados pelos justiceiros, mais matança de jovens negros e pobres nas periferias por milícias, vão resolver alguma coisa? Será que esse racismo óbvio, essa sobrevivência da Casa-Grande, irá construir uma sociedade fraterna? Será possível, com tal grau de violência, convencer alguém a conviver harmoniosamente em nossa sociedade? 

Ser o quarto país do mundo em número de pessoas nas prisões não indica estarmos enfrentando o problema da criminalidade. É hora de repensar valores, a presença da cultura racista entre nós, combatê-la, confrontar a ideia de fazer justiça pelas próprias mãos. Ninguém pode mais ser colocado no pelourinho como ocorreu com aquele jovem no Rio de Janeiro. A escravidão acabou.
*jornalista e escritor  emiljose@uol.com.br
www.emilianojose.com.br

 

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