24 de fevereiro de 2014
Emiliano José defende que violência não pode ser a saída
A partir do apelo insano à violência da apresentadora do SBT,
Raquel Sheherazade, contra o ladrão negro e jovem espancado nas ruas do Rio de
Janeiro, o jornalista Emiliano José faz uma reflexão no artigo "O ovo da serpente", publicado no jornal A Tarde: “Será possível acreditar
que mais prisões, mais pelourinhos espalhados pelos justiceiros, mais matança
de jovens negros e pobres nas periferias por milícias, vão resolver alguma
coisa? Será que esse racismo óbvio, essa sobrevivência da Casa-Grande, irá
construir uma sociedade fraterna? Com certeza, não. A escravidão acabou. LEIA NA ÍNTEGRA:
A jornalista e apresentadora do SBT Rachel Sheherazade, sem quaisquer rodeios, justificou a ação de justiceiros – e tem palavra mais imprópria neste caso? – contra um jovem negro de 15 anos violentamente espancado, orelha arrancada, nu e acorrentado a um poste com uma trava de bicicleta, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Onde posso, destaco o fato de que país nenhum passa incólume por mais de 350 anos de escravidão. Há muitos saudosos da escravidão. Há muitos sentados à varanda da Casa-Grande, melancólicos diante da falta do pelourinho.
Sheherazade disse que a atitude dos vingadores era até compreensível. Que o contra-ataque aos bandidos, a expressão é dela, era uma defesa coletiva. E conclamou aos defensores dos direitos humanos apiedados do marginalzinho – a expressão é dela –, preso ao poste, a participar da campanha “adote um bandido”. Ela expressa um sentimento presente na sociedade brasileira, lamentavelmente. O que nos leva à conclusão de que é absolutamente essencial travarmos um combate de valores, um combate cultural no País.
www.emilianojose.com.br
O ovo da serpente
Emiliano José*
Se não tomarmos cuidado, se
insistirmos apenas no pessimismo da inteligência, se descuidarmos do otimismo
da vontade, se não atentarmos para a ação política, eis-nos naufragados no
desânimo, na desesperança, na descrença do gênero humano. Como creio na
política como elemento civilizatório, essencial à vida racional, penso
necessário refletir sobre valores, sobre a cultura, sobre a emergência de pensamentos
tão cheios de ódio, tão ofensivo aos pobres, aos marginalizados, aos excluídos,
tão próprios de uma sociedade marcada pelo individualismo e pelo desprezo ao
outro.
O
capitalismo nos ensinou e nos ensina a pensar em cada um de nós. Nada de pensar
no outro. A não nos imaginarmos numa vida em comum. A voltarmo-nos sempre para
o indivíduo. Como se não existisse sociedade. E, com isso, a não procurar
causas para os acontecimentos. É um salve-se quem puder permanente. O homem como
lobo do homem, típico do raciocínio hobbesiano. O Brasil debate-se com uma
discussão dessa natureza: há que se condenar, sem apelação, os desenquadrados,
os fora-da-lei, os que fogem dos critérios da normalidade de qualquer natureza.
E o que é o
normal? De perto, alguém é normal? Convide-se todos a lerem “O alienista”, de
Machado de Assis. Nem sei se adianta muito esse convite. Há que se refletir
sobre um pensamento racista, à Casa Grande, ainda fortemente presente entre
nós. Alguns setores da sociedade brasileira preferem o agigantamento de cadeias
a quaisquer políticas públicas capazes de enfrentar as nossas gritantes
desigualdades, políticas aliás iniciadas desde 2003, como o Bolsa Família,
programa hoje copiado até por países desenvolvidos, tal a sua eficácia. A jornalista e apresentadora do SBT Rachel Sheherazade, sem quaisquer rodeios, justificou a ação de justiceiros – e tem palavra mais imprópria neste caso? – contra um jovem negro de 15 anos violentamente espancado, orelha arrancada, nu e acorrentado a um poste com uma trava de bicicleta, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Onde posso, destaco o fato de que país nenhum passa incólume por mais de 350 anos de escravidão. Há muitos saudosos da escravidão. Há muitos sentados à varanda da Casa-Grande, melancólicos diante da falta do pelourinho.
Sheherazade disse que a atitude dos vingadores era até compreensível. Que o contra-ataque aos bandidos, a expressão é dela, era uma defesa coletiva. E conclamou aos defensores dos direitos humanos apiedados do marginalzinho – a expressão é dela –, preso ao poste, a participar da campanha “adote um bandido”. Ela expressa um sentimento presente na sociedade brasileira, lamentavelmente. O que nos leva à conclusão de que é absolutamente essencial travarmos um combate de valores, um combate cultural no País.
Os
consumidores de crack são condenados à condição de bandidos automaticamente.
Viraram uma perigosa praga nacional. É a droga do pobres, e por isso denominada
epidêmica. Não é que o álcool seja epidêmico. Não é que o álcool cause tanto
prejuízo aos cofres públicos, ao sistema público de saúde. Não. O álcool pode
ser objeto de intensa publicidade, e nada acontece. Como não acontece nada aos
fumantes das muitas marcas de cigarro, e que mata tanta gente todo ano com as
mortíferas substâncias nelas contidas. Os muitos fármacos legais não são menos
letais. A repressão e a condenação são seletivas.
Será
possível acreditar que mais prisões, mais pelourinhos espalhados pelos
justiceiros, mais matança de jovens negros e pobres nas periferias por
milícias, vão resolver alguma coisa? Será que esse racismo óbvio, essa
sobrevivência da Casa-Grande, irá construir uma sociedade fraterna? Será
possível, com tal grau de violência, convencer alguém a conviver
harmoniosamente em nossa sociedade?
Ser o quarto país do mundo em número de pessoas nas prisões
não indica estarmos enfrentando o problema da criminalidade. É hora de repensar
valores, a presença da cultura racista entre nós, combatê-la, confrontar a
ideia de fazer justiça pelas próprias mãos. Ninguém pode mais ser colocado no
pelourinho como ocorreu com aquele jovem no Rio de Janeiro. A escravidão
acabou.
*jornalista e escritor emiljose@uol.com.br www.emilianojose.com.br