18 de dezembro de 2013
“Nós somos a voz de nossos mortos e torturados” disse Emiliano José à Comissão da Verdade da Bahia
“Não passamos por isso impunemente. Não queremos esquecer.
Não há jeito de esquecer. Impossível esquecer o que aconteceu a cada um de nós
e com centenas de companheiros que foram assassinados covardemente, sempre pela
violência da tortura. A ditadura prendia e torturava, prendia e matava.
Primeiro, torturava e depois fazia perguntas. Assim, há centenas de
companheiros mortos, mulheres estupradas, crianças violentadas. Recentemente,
veio à tona o caso de Inês Etiene, sobrevivente única da Casa da Morte de Petrópolis.
Ela foi estuprada, centenas de vezes, fizeram dela um trapo humano. Como
sobrevivente, pôde denunciar a existência da Casa da Morte. Saiu agora o livro
“Seu Amigo Esteve Aqui” narrando essa história macabra. Pois, recentemente, ela
foi novamente atacada em sua casa e ferida gravemente.”
O jornalista, escritor, professor universitário de
comunicação aposentado e suplente de deputado federal Emiliano José (PT)
prestou depoimento à Comissão Estadual da Verdade (04/12/2013). Coube ao
advogado Jackson Azevedo entrevistar o depoente: “Eu me sinto honrado por
conduzir o depoimento de Emiliano José, símbolo de político, homem público
sério - que neste país escasseia. Ele tem sido merecedor da admiração de todos
os que o conhecem. Com seu depoimento ele presta relevante serviço ao país, à
causa dos direitos humanos, à memória e verdade”.
COMISSÃO DA VERDADE - A Comissão Estadual da
Verdade é um mecanismo oficial de apuração de violações dos direitos humanos
ocorridas entre 1946 e 1988, com foco nos crimes cometidos durante a ditadura
militar (1964-1985). Os integrantes estão oficialmente investidos de poderes
para identificar e reconhecer os fatos e identificar pessoas que cometeram
violências, assim como as que sofreram violências. Compõem a Comissão Estadual
da Verdade na Bahia a educadora Amabília Almeida, o presidente da Associação
Bahiana de Imprensa (ABI), Antônio
Walter Pinheiro (ABI), o jornalista Carlos Navarro Filho, a socióloga Dulce
Tamara Lamego Silva Aquino, advogado Jackson Azevedo, sociólogo Joviniano
Soares Carvalho Neto (presidente) e a advogada Vera Christina Leonelli. A
comissão foi criada por decreto do governador Jaques Wagner em dezembro de
2012.
Como presidente, Joviniano Neto explicou por que começaram os
trabalhos com dez pessoas. Porque eles representam a “ponta do iceberg”, disse ele
na abertura da Audiência Pública realizada (03 e 04/12/2013) no salão Nobre da
Reitoria da UFBA. Prestaram depoimento Virgildásio
Senna, ex-prefeito deposto pelo golpe militar; Theodomiro Romeiro dos Santos e
Olderico Barreto que escolheram o caminho da luta armada; Luiz Contreiras,
dirigente do PCB que não apoiava a luta armada, mas, foi preso e torturado; o
artista plástico Juarez Paraíso que simboliza a perseguição às artes e à
cultura; Wilton Valença e Marival Caldas, sindicalistas petroleiros que
defenderam a Petrobrás e os trabalhadores; Emiliano José, Mariluce Moura e
Eliana Rolemberg, exemplos da juventude que arriscou a vida na luta contra a
ditadura.
EMILIANO JOSÉ NOMEIA TORTURADORES – “Ouvi a jornalista
Mariluce Moura hoje (04/12/2013) com muita atenção. Ontem (03/12/2013) ouvi
Teodomiro Romeiro dos Santos. Nós somos a voz de nossos mortos, assassinados e
torturados. Não somo apenas cada um de nós. Somos a voz dos que plantaram
sonhos. Mariluce Moura passou a viver um tormento em 1973, registrou com emoção
a dor de Tessa, sua filha, que nunca teve a chance de colocar uma flor no
túmulo de seu pai, Gildo Macedo Lacerda, cujo corpo nunca apareceu. Hoje, é
professora de filosofia e autora de um belo e sofrido texto, que leu chorando,
em vídeo. Essas dores nunca se dissiparam e não se dissiparão. Ontem (03) mesmo
fui ao Quartel do Barbalho com Teodomiro Romeiro dos Santos, fazer umas
filmagens para um documentário. Nunca tinha antes visto Teodomiro derramar uma
lágrima. E eu o vi carregado numa maca quase morto de tanta tortura. Pois ontem
vi Teodomiro tremendo e chorando, 40 anos depois de tudo”.
“Vejam o que aconteceu comigo. Passados tantos
anos, um ex-oficial da PM, hoje pastor Átila Brandão, da Igreja Batista Caminho
das Árvores, presta queixa crime contra mim, vai à Justiça e pede 2 milhões de
indenização, por “danos morais”. O que fiz? Uma reportagem sobre as torturas
sofridas pelo professor Renato Afonso Carvalho, em 1971, no Quartel dos Dendezeiros.
E quem era o torturador? O ex-oficial da PM Átila Brandão. Ainda hoje tenho que
enfrentar dois processos movidos por uma pessoa acusada de ter torturado um
preso político, com testemunhas e fontes vivas. Tive a ventura de ser defendido
pelo presidente da OAB/Bahia, Luiz Viana
Queiróz e pelo advogado Jerônimo Mesquita. Ou seja, o passado nos revisita”.
“Pois com este episódio, pudemos resgatar a história da luta
dos estudantes da Faculdade de Direito da UFBA, nos idos de 1968, quando a
presença deste ex-oficial da PM provocou greve de meses. Portanto, sou um
sobrevivente. Cheguei à Bahia em 1970, conheci José Sérgio Gabrielli aqui
presente como jovem secundarista, assim como Mariluce Moura. Já tinha sido
perseguido antes. Escapei da repressão em São Paulo e em Santa Catarina. E aqui
cheguei numa semiclandestinidade com o nome de Pedro Luiz Vian. Em 23 de
novembrto de 1970 fui preso na Praia da Ribeira, no momento em que subia num
ônibus, após uma reunião com Tibério Canuto e outros companheiros”.
TORTURAS NAS PORÕES
DO EXÉRCITO - Fui o primeiro a ser preso. Lutei com o agente policial, um
gigante que ficou com minha camisa na mão. Tive tempo de mastigar papéis com
nomes de contatos. E já fui jogado no veículo sob espancamento. Às vezes a
gente fala dos horrores da tortura, como se o resto não fosse. Há poucos dias
ajudei a companheira Maria José Malheiros, que passou 40 anos na
clandestinidade. Foi barbaramente torturada e se exilou na França. Agora, dia
24 de outubro de 2013, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça julgou
sua anistia, com reparação por seus direitos violados.
Preso, fui levado para a sede da Polícia Federal, na Cidade
Baixa, Comércio. Eu me confrontei com o coronel Luiz Artur de Carvalho.
Perguntei a ele porque tinha sido preso e ele me respondeu: “Você vai saber
daqui a pouco no pau”. À época tínhamos uma orientação meio suicida de nada
falar. Não era como na resistência francesa contra o nazismo de agüentar 24
horas. Encontrei o companheiro Benjamim Ferreira, combinamos que não nos
conhecíamos. Meu raciocínio era: eu dependo apenas de mim mesmo. Não posso
fraquejar. Muita gente falou. Não os culpo. Os culpados eram os agentes da
ditadura. Quem sabe qual é o limite de cada um para a dor? O dirigente
comunista Mário Alves foi morto com um cassetete enfiado no ânus, uma técnica
de tortura da idade média – o empalamento; a Madre Maurina foi estuprada; O
presidente da Comissão da Verdade, Joviniano Neto, até me sugeriu um texto
sobre a resistência à ditadura da parte de Dom Timóteo.
CORONEL LUIZ ARTUR, TORTURADOR – “Mas eu cheguei à sede da Polícia Federal com a
idéia que se morresse estaria tudo bem. Quando você é levado dentro de um
camburão, levado de um canto a outro, você chega à conclusão que chegou sua
hora. O coronel torturador Luiz Artur voltou a me dizer: “Você vai falar no
pau, lá no Quartel do Barbalho. Anos depois, já como jornalista, nas campanhas
pela anistia, eu sempre o denunciava, e ele costumava dizer que eu o perseguia.
Não me peçam para não falar sobre a tortura que sofri. Fui para o Quartel do
Barbalho, jogado num tatame de luta marcial, ali o capitão Hemetério Chaves
Filho, manifestava um sadismo muito grande. Muita violência. Primeiro, lhe
tiram a roupa, você fica nu, essa violência de caráter sexual vale tanto para o
homem quanto para a mulher”.
“Um turbilhão passa
por sua cabeça nesse instante. Com isso aí não me tiram nada, pensei. Mais
espancamento. Depois me levam para o tanque, enfiam minha cabeça na água. Uma
sensação horrível de sufocamento. Novamente penso que com isso não me tiram
nada. Se você dá um endereço, você dará o resto. Logo mais vem o pau de arara.
As palavras não tem força para descrever o que é a tortura.O impacto do terror
na alma depende de cada um. Eu me senti forte. Não fisicamente em meus 24 anos.
Fui suportando a dor. Depois vem os choques elétricos você dependurado no pau
de arara com o corpo molhado. O capitão Gildo Ribeiro, o capitão Hemetério
Chaves Filho, amigo do cabo Dalmar Caribé, um dos que mataram o capitão Lamarca.
Os dois comandavam a tortura. Hemetério com muito gosto. Anos depois li sobre a
banalidade do mal, no livro de Hannah Arendt. O capitão Gildo Ribeiro me dizia:
Ô Pedro, dê um nome que te desço e te dou uma coca-cola. No mesmo instante me
dizia que estava preocupado com a mulher dele, que estava doente. A banalidade
da tortura”.
“Oldack Miranda, que está aqui, foi levado para Recife para
ser torturado. Não havia nada a informar mais, depois de dois anos fora da área
de trabalho camponês do Maranhão. Mas queriam apenas torturar. A banalidade do
mal. Neste primeira noite saí da tortura ainda consciente. Mas, Teodomiro me
disse depois que vim desmaiado. Me lembro que tiraram minha venda dos olhos e
perguntaram se me conhecia. Teodomiro respondeu que não. No dia seguinte me
perguntei onde fui buscar força para não dizer sequer meu nome. É que se
dissesse meu nome muita coisa seria revelada. Não dei nome, endereço, apenas
meu nome frio, Pedro. Pensei que qualquer absurdo que eu fizesse seria melhor
que o absurdo da ditadura. Fisicamente, estava destroçado. Eu queria morrer,
apagar”.
“Hélio Pelegrino diz que na tortura você passa por uma briga
permanente entre o corpo e a mente. O corpo pede para parar com a dor, mas a
mente lhe diz para não falar, não entregar seus companheiros. Fui levado para
uma cela, tive febre alta, mudaram de estratégia. Chega à cela um cara
estranho, xingando, seus filhos da puta
e de cara pergunta se eu dei endereço. Não, só tinha endereço em São Paulo. O
cara era um policial, não passava de uma armadilha. Teodomiro diz que a cadeia
é em si uma tortura. Aquilo que Gramsci dizia: “o grão de areia que cai a cada
dia”. Lembrava do mar cinzento. Nessa hora tudo fica cinza”.
“Em janeiro de 1971m quando fomos transferidos, eu,
Teodomiro, Dirceu Regis, Paulo Pontes, Welligton Freitas, não sabíamos para
onde nos levavam. São momento de terror. Nos levaram para a Penitenciária Lemos
de Brito. Por incrível que paçea, um momento de felicidade. Fomos para a
Galeria F, só de presos políticos. E lá encontramos outros companheiros, Nemésio,
Fernando Mesquita, Getúlio Gouveia, Ruy Patterson. Era um momento de
felicidade, portanto. Isso porque quando se sai da tortura para a Polícia
Federal e depois para a Penitenciária você é autenticado, oficializado”.
“A essa altura eles
já sabiam meu nome. Um deles me disse: “Emiliano, você vai passar muito anos
aqui porque um quadro como você não se forma rapidamente”. Concluí então que
não iam me matar. Mas, descobriram meu nome. É que os companheiros que estavam
soltos, do movimento estudantil, começaram a pichar nos murtos: “libertem
Emiliano, pintaram a cidade inteira”. O cineasta Edgard Navarro filmou essas
pichações num de seus filmes. Foi o bastante para me levarem de volta ao
Quartel do Barbalho. “Emiliano, sabemos quem você é”. São momentos importantes.
Você vai se fortalecendo, vai crescendo, o medo não acaba, mas diminui e você
enfrenta. A dor é permanente enquanto se está preso. A comida é ruim. Ainda
assim você enfrenta tudo isso com tranqüilidade. Eu não tinha roupa, nada. Getúlio me
perguntou: Emiliano, o que falta aí?”. Eu respondi, não me falta nada. Estava vivo, O sanitário era uma lata de
querosene que a gente era obrigado a descartar fora. Mas eu disse ao guarda que
não agüentava carregar por causa da tortura. Ele levou. Ficamos até setembro de
1971 na Galeria F. Um dia me dizem “Emiliano, você vai viajar”. Era novamente o
terror.
UM TORTURADOR SE CHAMAVA JESUS CRISTO - Num instante estou novamente num camburão, entro algemado num avião militar e lá estão
Sérgio Fleury e Jesus Cristo, era esse o nome de Dirceu Cravina, um torturador
cruel da OBAN. Fiquei alguns dias em São Paulo e retornei à Galeria F. Tenho
escrito sobre esse tempo. Deixo aqui para a Comissão da Verdade a coleção. A Galeria F foi uma experiência rica. O
Olderico Barreto chegava a dizer que foi a época mais feliz da vida dele, ali
ele estudou inglês, leu muito, debateu política. No final de 1972 aconteceu uma
rebelião de presos comuns, as grades caiam como se fossem de papel, mas eles
vieram e perguntaram se deveriam quebrar também a Galeria F. Dissemos que não e
eles obedeceram. Estabelecemos uma relação de respeito.
Tínhamos um coletivo organizado com artesanato, dois times
de futebol, regras de disciplina. Cheguei afazer greve de fome, por causa de
uma otite muito forte. O diretor Edmundo Tosta me levou para a enfermaria onde
as condições eram ainda piores. Passei ali onze dias, só bebendo água. A
infecção acabou cedendo. No final de 1974 sai em liberdade condicional, em 1979
fui anistiado.
Jackson Azevedo, o advogado condutor da entrevista de
Emiliano José à Comissão da Verdade pergunta como se deu a aproximação do jovem
Emiliano com a política, com a Ação Popular. Também pergunta se era verdade que
o capitão Gildo Ribeiro chegou a pedir perdão anos depois. E se a imagem de
Luiz Artur como pessoa que não compactuava com a tortura não era uma
contradição.
Emiliano José responde. Minha estrada de Damasco foi um
pequeno círculo em Jaçanã, São Paulo, na casa de Pedro Oliveira e Ada Oliveira.
Foi quando me aproximei da esquerda. Líamos a História da Riqueza do Homem, de
Leo Huberman. A partir daí as coisas aconteceram em alta velocidade. Quando
jogamos pedra no governador Abreu Sodré, eu já era da AP. Sim, é verdade que o
torturador Gildo Ribeiro foi um dia à prisão para me pedir perdão. Não o
recebi, mas, no dia de visita ele apareceu: “Você foi responsável pela minha
conversão ao cristianismo”. Eu disse a ele que nunca o perdoaria e que estava
ali por uma razão política, se as coisas mudassem nunca torturaria
ninguém. Depois que saí da prisão ele
tentou se encontrar comigo. Depois da morte dele, o filho me procurou e pediu
perdão em nome dele.
Os torturadores eram comandados por generais do exército.
Adyr Fiúza foi um cruel torturador. Consciente. Quanto à Igreja Católica está
mais do que provado que ela apoiou o golpe militar, inclusive a CNBB
oficialmente. Com o tempo foi percebendo que a ditadura se voltava também
contra a Igreja. Então aos poucos a CNBB foi passando a fazer oposição de
maneira firme.
O ex-preso político Emiliano José terminou seu depoimento e
em seguida o diretor da Tribuna da Bahia, Walter Pinheiro, presidente da
Associação Baiana de Imprensa (ABI) conduziu o depoimento do ex-líder
petroleiro Marival caldas.Wilton Valença, também ex-líder petroleiro e
ex-deputado estadual não compareceu por motivo de doença.