26 de junho de 2013

 

Ruy Medeiros, Emiliano e a ironia da história


Ruy Medeiros era estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia, na época em que o hoje pastor Átila Brandão era agente policial. Em seu blog, Medeiros, dono de um belo texto, relembra a revolta estudantil contra o informante da ditadura. “Os protestos ecoaram em todas as salas. Era impossível contê-los”. O regime militar prendia e torturava. “O saudoso A. L. Machado Neto (...) afirmou que os policiais não eram discentes, mas dicentes (não de discere, aprender, mas de dicere, dizer). Passados tantos anos, eis que o ex-policial processa o jornalista Emiliano José que revelou o nome de um dos torturadores do professor Renato Afonso.
“Não sei, Emiliano José, como o exercício de sua liberdade de narrar parte da saga de u’a mãe heróica será vista pelo juiz que apreciará o processo do oficial–pastor Átila Brandão; mas posso-lhe dizer que é ironia da história que velho agente da opressão processe a vítima dessa e que seu escrito tão necessário para a democracia ironicamente (ironia contraditoriamente necessária) perpetue o nome de pessoa que normalmente não teria a expressão que tomou. A justiça de seu artigo choca-se contra o vazio ético do improvável inconformismo do pastor”.

SEGUE O TEXTO NA ÍNTEGRA:

Emiliano José e a Ironia
Ruy Medeiros

Há momentos em que os atropelos na luta pela existência nos fazem atropelar prioridades. É muito grave abandonarmos a prioridade da fala no momento devido. Essa falta nos fere.

Bertold Brecht em seu poema “Aos que vão nascer” (bela tradução de Geir Campos) fala da dificuldade de ser amigo em tempos de opressão.
(...)
“E entretanto sabíamos:
Também o ódio à baixeza endurece as feições,
também a raiva contra a injustiça
torna mais rouca a voz. Ah, e nós,
que pretendíamos preparar o terreno para a amizade,
nem bons amigos nós mesmo podemos ser.
Mas vós, quando chegar a ocasião
de ser o homem um parceiro para o homem,
pensai em nós
Com simpatia”.

Essa introdução vem por conta de não ter eu expressado antes, em letra de forma, o sentimento que me envolve em relação ao choque entre Emiliano José e Átila Brandão, pastor.

Emiliano José, como vem fazendo há anos, publicou mais um artigo sobre vítimas algozes e fatos da ditadura militar. Dessa vez o fez envolvendo intuição de Maria Helena Rocha Afonso de Carvalho (Yayá) de que seu filho, Renato Afonso, estaria sendo torturado no quartel da polícia militar, sito no bairro de Dedenzeiros, em Salvador. Mencionado na matéria, Átila Brandão, julgando-se atingido em sua honra, resolveu processar Emiliano José.

Quando o hoje pastor Átila Brandão atuava como policial, eu era estudante do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. Em certo momento, os estudantes, inclusive eu, fomos tomados de revolta: soubemos que Átila e Pitanga, seu colega de corporação armada, estavam na Faculdade de Direito como informantes, a serviço da ditadura (polícia militar era força auxiliar do exército), e que ajudavam na repressão aos movimentos de rua dos estudantes que combatiam o regime ditatorial. Os protestos ecoaram em todas as salas, corredores e cantina do prédio da Faculdade de Direito. Impossível contê-los.

Tinha sentido a nossa explosão estudantil: o regime militar prendia e torturava e, naquele mesmo ano, adotou o Decreto-lei 477 que previa a expulsão de estudantes, professores e funcionários de escolas e faculdades, por atividades conspiratórias ou rebeldia contra o governo imposto. A atividade de espionagem e “dedurismo” conduzia à prisão e à expulsão de estudantes (mesmo de pessoas com atividade discreta como a atual desembargadora Maria do Carmo Osório Pimentel Leal foi expulsa por conta de informações de “dedo duros”).

Os protestos continuavam. Havia a convicção de que aqueles policiais estavam freqüentando a faculdade para servirem à ditadura. O saudoso A. L. Machado Neto, professor marcante, sobre aqueles dois policiais afirmou que eles não eram discentes, mas dicentes (não de discere, aprender; mas de dicere, dizer).

Tantos anos após esses fatos, Emiliano José fala de Maria Helena Rocha Afonso de Carvalho e da confidência desta de que sentira forte angústia e fora ao Quartel dos Dedenzeiros com a suspeita incontida de que seu filho, Renato Afonso, estava sendo torturado. Confirmou sua “premonição”, no local, e – ainda mais –que um dos torturadores era Átila Brandão, policial, hoje pastor.

Emiliano José combateu a ditadura. Sofreu prisão e os horrores dessa, a tortura. Foi condenado e cumpriu pena por combater a ditadura militar.

Hoje, estou num país que não puniu, nem quer punir, os torturadores, e em que um torturado é ironicamente processado por ex agente daquela ordem autoritária.

Não sei, Emiliano José, como o exercício de sua liberdade de narrar parte da saga de u’a mãe heróica será vista pelo juiz que apreciará o processo do oficial –pastor Átila Brandão; mas posso-lhe dizer que é ironia da história que velho agente da opressão processe a vítima dessa e que seu escrito tão necessário para a democracia ironicamente (ironia contraditoriamente necessária) perpetue o nome de pessoa que normalmente não teria a expressão que tomou. A justiça de seu artigo choca-se contra o vazio ético do improvável inconformismo do pastor.

No mais, paciente leitor, é ganhar tempo e ler A Premonição de Yayá. Até outra página!

Leia em 14:06 | 14 de Junho de 2013
Artigo A Tarde - A premonição de Yaiá
Emiliano José*
No Link
http://www.emilianojose.com.br/index.cfm?event=Site.dspNoticiaDetalhe&noticia_id=1391 
Postado há 5 days ago por RUY MEDEIROS
http://ruymedeiros.blogspot.com.br/

 

24 de junho de 2013

 

AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO E A GRANDE MÍDIA


Apesar da proximidade cronológica, parece razoável observar que o estopim para as manifestações populares que estão ocorrendo no país foram o aumento das tarifas do transporte coletivo e a repressão violenta da polícia (vitimando, inclusive, jornalistas no exercício de sua atividade profissional) – não só à primeira passeata realizada em São Paulo, mas também à manifestação realizada antes da abertura da Copa das Confederações, em Brasília. A partir daí, um conjunto de insatisfações que vinha sendo represado explodiu.
A primeira reação da grande mídia, bem como das autoridades públicas, foi de condenação pura e simples das manifestações que, segundo eles, deveriam ser reprimidas com ainda maior rigor. No entanto, à medida que o fenômeno se alastrou, autoridades e mídia alteraram a avaliação inicial.

A grande mídia, então, passa a cobrir os acontecimentos como se fosse apenas uma observadora neutra, que nada tem a ver com os fatos que desencadearam – para o bem ou para o mal – todo o processo.
CENTRALIDADE DA MÍDIA

Nas sociedades contemporâneas, apesar da velocidade das mudanças tecnológicas, sobretudo no campo das comunicações, a centralidade da mídia é tamanha que nada ocorre sem seu envolvimento direto e/ou indireto.
Qual teria sido esse envolvimento no desencadeamento das atuais manifestações?

Um primeiro aspecto chama a atenção. Pelo que se sabe, as manifestações tem sido convocadas por meio de redes sociais. Isto é, através de um sistema de comunicação independente do controle da grande mídia.
Na verdade, a se confirmar que a maioria dos participantes é de jovens (em Brasília, um dos “convocadores” da “Marcha do Vinagre” tem apenas 17 anos), trata-se de um segmento da população que se informa prioritariamente pelas redes sociais na internet e não pela grande mídia – jornais, revistas, radio, televisão.

Apesar disso, um aspecto aparentemente contraditório, mas fundamental – revelado inclusive em cartazes dispersos nas manifestações – é que os manifestantes se consideram “sem voz pública”, isto é, sem espaço para expressar e ter a voz ouvida.
Desnecessário lembrar que a grande mídia ainda exerce, na prática, o controle do acesso ao debate público, vale dizer, das vozes que se expressam e são ouvidas. Além disso, a cultura política que vem sendo construída e consolidada no Brasil, pelo menos desde que a televisão se transformou em “mídia de massa” hegemônica, tem sido de desqualificação permanente da política e dos políticos.

E é no contexto dessa cultura política que as novas gerações estão sendo formadas – mesmo não se utilizando diretamente da velha mídia. Emerge, então, uma questão delicada.
A MÍDIA E O SYSTEM BLAME

Independentemente das inúmeras e verdadeiras razões que justificam a expressão democrática de uma insatisfação generalizada por parte de parcela importante da população brasileira, não se pode ignorar o papel da grande mídia na construção dessa cultura política que desqualifica sistematicamente a política e os políticos.

E mais importante: não se pode ignorar os riscos potenciais para o regime democrático da prevalência dessa cultura política. Recorri inúmeras vezes, ao longo dos anos, a uma arguta observação da professora Maria do Carmo Campello de Souza (já falecida) ao tempo da transição para a democracia, ainda no final da década de 1980.
Em capítulo com o título "A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles", publicado em livro organizado por Alfred Stepan Democratizando o Brasil (Paz e Terra, 1988), ela discute, dentre outras, a questão da credibilidade da democracia. Nas rupturas democráticas, afirma ela, as crises econômicas têm menor peso causal do que a presença ou ausência do system blame (literalmente, "culpar o sistema"), isto é, a avaliação negativa do sistema democrático responsabilizando-o pela situação.

Citando especificamente os exemplos da Alemanha e da Áustria na década de 1930, lembra Campello de Souza que "o processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime democrático, eles já se encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura". A análise da situação brasileira, há mais de duas décadas, parece mais atual do que nunca. A contribuição insidiosa da mídia para o incremento do system blame é apontada como um dos obstáculos à consolidação democrática.
Vale a pena a longa citação:

“A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo linguístico sistemático sobre o "discurso adversário" em relação à democracia, expresso pelos meios de comunicação. Parece-nos possível dizer (...) que os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (...).
Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7).

(...) O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (...) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos.
(...) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (...). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (...). (pp.588-9, passim).

AVANÇOS E RISCOS
As manifestações populares devem, por óbvio, ser vistas por aqueles em posição de poder como uma oportunidade de avançar, de reconsiderar prioridades e políticas públicas. Do ponto de vista da grande mídia, é indispensável que se reflita sobre o tipo de cobertura política que vem sendo oferecida ao país.

Encontrar o ponto ideal entre a fiscalização do poder público e, ao mesmo tempo, contribuir para o fortalecimento e a consolidação democrática, não deveria constituir em objetivo da grande mídia? A quem interessa a ruptura democrática?
Apesar de ser um tema delicado e difícil – ou exatamente por essa razão – é fundamental que se considere os limites entre uma cobertura sistematicamente adversária da política e dos políticos e os riscos de ruptura do próprio sistema democrático. A ver.

Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros.
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http://www.teoriaedebate.org.br/colunas/midia/manifestacoes-de-junho-e-midia#sthash.EP2al1vB.dpuf

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