11 de abril de 2008
Raul Reyes, o herói assassinado pelo fascismo colombiano
O governo de Álvaro Uribe assassinou, em território do Equador, o comandante Raul Reyes, das FARC, numa operação concebida e executada com o apoio dos EUA.
A notícia foi inicialmente divulgada pelo ministro da Defesa de Uribe, num comunicado triunfalista que deturpa grosseiramente os acontecimentos, ocultando o caráter criminoso da ação terrorista.
Segundo Juan Manuel Santos, Raul Reyes teria sido abatido num acampamento situado no Equador, a 1.800 metros da fronteira, durante um bombardeamento realizado pela Força Aérea do seu país a partir de território colombiano, para não violar a soberania dos países vizinhos. Mas logo esclarece que, posteriormente, tropas do exército atravessaram a fronteira para recolher o corpo de Raul Reyes e trazê-lo para Bogotá, a fim de evitar que os guerrilheiros das FARC o sepultassem.
A nota do ministro apresenta assim, pelo absurdo, um toque surrealista. É inimaginável que qualquer avião possa despejar bombas sobre um acampamento, encontrando-se a quase dois quilômetros de distância. É grotesco que essa mentira seja seguida da confissão de que, afinal, forças do exército colombiano violaram pouco depois a soberania equatoriana.
As coisas passaram-se de outra maneira
Através de satélites norte-americanos, Uribe teve conhecimento da presença de um grupo de guerrilheiros das FARC do lado equatoriano do departamento colombiano amazônico de Puntomayo.
Bogotá soube através de delação que Raul Reyes se encontrava no local. O dirigente revolucionário tinha a cabeça a prêmio, vivo ou morto, por 2,7 milhões de dólares. A denúncia foi paga e aviões Super Tucan da Força Aérea colombiana – a mais poderosa e bem equipada da América Latina – despejaram uma chuva de bombas sobre o acampamento.
No criminoso ataque de pirataria aérea morreram, além de Reyes, o cantor revolucionário Julian Conrado (o grande artista da Rádio clandestina Voz de la Resistencia) e 16 guerrilheiros. Foram massacrados enquanto dormiam, em condições ainda mal conhecidas.
Uribe, ao receber a notícia, felicitou a Força Aérea e o corpo de Reyes, mutilado pela metralha, foi levado para Bogotá. Logo fotografias do cadáver ensangüentado do herói apareceram em televisões e jornais de dezenas de países. Quase o mesmo ritual macabro que envolveu o assassínio de Che em 1967.
Os bastidores do crime
O atentado terrorista ocorre num momento em que a campanha para a libertação da franco-colombiana Ingrid Bettancourt inspira as manchetes da chamada grande imprensa internacional. Nunca se mentiu tanto sobre a realidade colombiana como nestes dias em que, a pretexto do sofrimento da ex–candidata à presidência, as FARC são alvo de uma montanha de calúnias.
Um dia ficará evidente que, no debate em torno do intercâmbio humanitário, as FARC atuaram sempre com transparência e autenticidade revolucionárias, movidas por um objetivo humanista, e Uribe com hipocrisia e intenções inconfessáveis.
Correspondendo a insistentes apelos de Hugo Chavéz e da senadora Piedad Córdoba, as FARC decidiram numa primeira fase libertar unilateralmente Clara Rojas e a ex-deputada Consuelo Perdomo. A operação foi, aliás, adiada por alguns dias porque Uribe intensificou a concentração de tropas na área onde presumivelmente ambas deveriam ser entregues à Cruz Vermelha Internacional e transportadas para Caracas em helicópteros venezuelanos.
As FARC estavam conscientes dos enormes riscos que a operação envolvia. Só quem conhece a geografia da Colômbia - um país com 1.140.000 quilômetros quadrados e 45 milhões de habitantes, sulcado por três cordilheiras, rios gigantescos e em grande parte coberto pela densa floresta amazônica - pode avaliar o que significou conduzir as duas mulheres do desconhecido acampamento em que se encontravam até o departamento do Guaviare, perto da fronteira venezuelana. É útil, aliás, recordar que o exército colombiano violou o compromisso de cessar fogo e começou a bombardear o local uma hora após os helicópteros terem levantado vôo.
Os satélites americanos transmitiram obviamente a Bogotá minuciosas informações sobre o percurso seguido pelo comando guerrilheiro incumbido de entregar Clara e Consuelo à Cruz Vermelha.
Insistiram posteriormente as FARC pela desmilitarização dos municípios de Pradera e Florida como condição indispensável ao intercâmbio humanitário, exigido pelo povo colombiano, operação que previa a troca de 40 reféns em poder das FARC, entre os quais Ingrid Bettancourt, por 500 guerrilheiros encarcerados em presídios do governo.
Uribe negou-se a atender a todas as propostas internacionais recebidas com o objetivo de se chegar a um acordo que permitisse a troca. Não obstante essa atitude intransigente do presidente neofascista da Colômbia, as FARC, correspondendo a um novo apelo de Hugo Chávez, tomaram a decisão de libertar, também em gesto unilateral, quatro deputados em seu poder.
Mais uma vez a operação foi adiada porque o Exército, nas vésperas da data prevista, mobilizou poderosas forças, concentrando-as nos departamentos do Caquetá, do Meta e do Guaviare, onde as FARC estão bem implantadas e por onde, presumivelmente, os parlamentares poderiam passar. Era duplo o objetivo dessa iniciativa.
Se houvesse um choque direto, Uribe responsabilizaria as FARC pela morte dos deputados. Simultaneamente, os aviões espias, equipados com uma tecnologia que Washington somente proporciona a Israel, estiveram ativíssimos.
Os satélites americanos transmitiram informações valiosas a Bogotá, mas as FARC cumpriram mais uma vez, o que não impediu uma intensificação da campanha pró-libertação imediata de Ingrid Bettancourt. Essa exigência era, nas condições existentes, de impossível concretização. Uma mulher fragilizada, doente, não podia em hipótese alguma caminhar durante dias através de regiões selváticas, onde as tropas colombianas poderiam interceptar o comando por ela responsável.
Renovaram, portanto, as FARC, sua proposta para desmilitarização de Pradera e Florida, sem a qual o intercâmbio humanitário é inviável.
O herói caído em combate
O comandante Raul Reyes era, depois de Manuel Marulanda, o membro mais destacado do Secretariado e do Estado-Maior Central das FARC. Revolucionário desde a juventude – tinha atualmente 60 anos -, travou as primeiras lutas políticas como sindicalista. Elas foram uma iniciação para outras batalhas. Há mais de trinta anos, Luís Edgar Devia embrenhou-se nas montanhas, aderiu às FARC, tornou-se Raul Reyes.
Conheci-o em maio de 2001. Recebi um convite para passar algumas semanas no seu acampamento, próximo de San Vicente del Caguan, capital da então Zona Desmilitarizada. Aceitei com prazer.
Raul Reyes não impressionava pela aparência física. Baixo, levemente grisalho, tinha um timbre de voz suave. Mas logo na primeira noite, após o jantar, quando conversamos no seu posto de comando – um austero escritório, com uma mesa e duas cadeiras, instalado sob uma tenda oculta pelas altas copas da mata amazônica –, percebi que aquele guerrilheiro frágil era uma personalidade excepcional. Falamos do mundo em crise, antes de me oferecer livros e documentação como prólogo indispensável à abordagem da luta das FARC.
Era o responsável pelas conversações de paz que transcorriam naquelas semanas, no vilarejo de Los Pozos, com os representantes do governo do presidente Pastrana.
Corriam então os tempos em que Pastrana saudava Manuel Marulanda com abraços de Judas, dias em que vi embaixadores de países da União Européia a disputar as palavras e o sorriso do legendário Tirofijo, comandante supremo das FARC.
Viajei com Reyes para La Macarena, onde as FARC libertaram unilateralmente 304 soldados, policiais, prisioneiros de guerra, e tive o privilégio de manter com ele, nas madrugadas mornas da floresta, longos diálogos sobre a sua organização revolucionária, a América Latina e a estratégia do imperialismo estadunidense, o grande inimigo da humanidade. E também sobre a vida.
Escrevi no próprio acampamento artigos para o "Avante!", sobre os combatentes das FARC e uma entrevista também publicada pelo órgão do PCP.
A atmosfera tinha algo de irreal, porque os próprios textos eram transmitidos pela secretária de Raul para um destinatário, que depois os encaminhava ao jornal. A Internet, paradoxalmente, podia funcionar como instrumento ao serviço de uma guerrilha revolucionária. Para honra e proveito meu, Raul Reyes manteve o contato comigo. Com freqüência, recebia mensagens suas, por intermédio de comandantes amigos, por vezes agradecendo artigos que publicara sobre a luta das FARC.
Recordo que pouco antes do seqüestro no Equador do comandante Simon Trinidad – depois entregue por Uribe aos EUA –, sugeriu que voltasse à selva colombiana. O projeto foi então a pique porque a fronteira equatoriana se havia tornado muito insegura.
Até o seu último dia, Reyes foi a voz das FARC no diálogo com o mundo. Mas o comandante guerrilheiro, incumbido de incontáveis tarefas, encontrava ainda tempo para escrever artigos, alguns sobre complexas questões ideológicas, para a revista Resistência, órgão internacional das FARC, e para dar entrevistas a jornais da Europa, da América Latina, dos EUA. Nelas, o saber e a firmeza do comunista de têmpera tinham como complemento harmonioso a cultura do intelectual humanista.
Uribe festeja agora a morte do combatente que, nas palavras de homenagem de Jaime Caicedo, o secretário-geral do Partido Comunista Colombiano, foi um revolucionário exemplar que "entregou a vida pela causa em que acreditava".
O triunfalismo do presidente neofascista da Colômbia, que financiou o paramilitarismo quando governador de Antioquia e tem o seu nome na lista dos narcotraficantes elaborada pela Drug Enforcement Agency, dos EUA, mas é hoje o melhor aliado de Bush no continente, não tem o poder de fazer história.
A passagem pela presidência dos seus países de Uribe e de Bush deixará apenas memória de atos sombrios e de crimes contra a humanidade. A Marcha contra o Paramilitarismo e pela Paz na Colômbia, a realizar-se no dia 6 de Março, na Colômbia e em diferentes capitais da Europa e da América Latina, assume também agora o significado de uma homenagem póstuma a Raul Reyes. A solidariedade com aqueles que se batem e morrem por uma Colômbia democrática e progressista é, mais do que nunca, necessária.
Raul Reyes entra, ao desaparecer assassinado, no panteão dos heróis da América Latina. Como Sucre, como Bolívar, como Artigas, o Che, Raul Reyes ultrapassa a fronteira da única forma de eternidade possível, a dos homens que viveram para servir a humanidade e contribuir para que ela continue.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista português.
A notícia foi inicialmente divulgada pelo ministro da Defesa de Uribe, num comunicado triunfalista que deturpa grosseiramente os acontecimentos, ocultando o caráter criminoso da ação terrorista.
Segundo Juan Manuel Santos, Raul Reyes teria sido abatido num acampamento situado no Equador, a 1.800 metros da fronteira, durante um bombardeamento realizado pela Força Aérea do seu país a partir de território colombiano, para não violar a soberania dos países vizinhos. Mas logo esclarece que, posteriormente, tropas do exército atravessaram a fronteira para recolher o corpo de Raul Reyes e trazê-lo para Bogotá, a fim de evitar que os guerrilheiros das FARC o sepultassem.
A nota do ministro apresenta assim, pelo absurdo, um toque surrealista. É inimaginável que qualquer avião possa despejar bombas sobre um acampamento, encontrando-se a quase dois quilômetros de distância. É grotesco que essa mentira seja seguida da confissão de que, afinal, forças do exército colombiano violaram pouco depois a soberania equatoriana.
As coisas passaram-se de outra maneira
Através de satélites norte-americanos, Uribe teve conhecimento da presença de um grupo de guerrilheiros das FARC do lado equatoriano do departamento colombiano amazônico de Puntomayo.
Bogotá soube através de delação que Raul Reyes se encontrava no local. O dirigente revolucionário tinha a cabeça a prêmio, vivo ou morto, por 2,7 milhões de dólares. A denúncia foi paga e aviões Super Tucan da Força Aérea colombiana – a mais poderosa e bem equipada da América Latina – despejaram uma chuva de bombas sobre o acampamento.
No criminoso ataque de pirataria aérea morreram, além de Reyes, o cantor revolucionário Julian Conrado (o grande artista da Rádio clandestina Voz de la Resistencia) e 16 guerrilheiros. Foram massacrados enquanto dormiam, em condições ainda mal conhecidas.
Uribe, ao receber a notícia, felicitou a Força Aérea e o corpo de Reyes, mutilado pela metralha, foi levado para Bogotá. Logo fotografias do cadáver ensangüentado do herói apareceram em televisões e jornais de dezenas de países. Quase o mesmo ritual macabro que envolveu o assassínio de Che em 1967.
Os bastidores do crime
O atentado terrorista ocorre num momento em que a campanha para a libertação da franco-colombiana Ingrid Bettancourt inspira as manchetes da chamada grande imprensa internacional. Nunca se mentiu tanto sobre a realidade colombiana como nestes dias em que, a pretexto do sofrimento da ex–candidata à presidência, as FARC são alvo de uma montanha de calúnias.
Um dia ficará evidente que, no debate em torno do intercâmbio humanitário, as FARC atuaram sempre com transparência e autenticidade revolucionárias, movidas por um objetivo humanista, e Uribe com hipocrisia e intenções inconfessáveis.
Correspondendo a insistentes apelos de Hugo Chavéz e da senadora Piedad Córdoba, as FARC decidiram numa primeira fase libertar unilateralmente Clara Rojas e a ex-deputada Consuelo Perdomo. A operação foi, aliás, adiada por alguns dias porque Uribe intensificou a concentração de tropas na área onde presumivelmente ambas deveriam ser entregues à Cruz Vermelha Internacional e transportadas para Caracas em helicópteros venezuelanos.
As FARC estavam conscientes dos enormes riscos que a operação envolvia. Só quem conhece a geografia da Colômbia - um país com 1.140.000 quilômetros quadrados e 45 milhões de habitantes, sulcado por três cordilheiras, rios gigantescos e em grande parte coberto pela densa floresta amazônica - pode avaliar o que significou conduzir as duas mulheres do desconhecido acampamento em que se encontravam até o departamento do Guaviare, perto da fronteira venezuelana. É útil, aliás, recordar que o exército colombiano violou o compromisso de cessar fogo e começou a bombardear o local uma hora após os helicópteros terem levantado vôo.
Os satélites americanos transmitiram obviamente a Bogotá minuciosas informações sobre o percurso seguido pelo comando guerrilheiro incumbido de entregar Clara e Consuelo à Cruz Vermelha.
Insistiram posteriormente as FARC pela desmilitarização dos municípios de Pradera e Florida como condição indispensável ao intercâmbio humanitário, exigido pelo povo colombiano, operação que previa a troca de 40 reféns em poder das FARC, entre os quais Ingrid Bettancourt, por 500 guerrilheiros encarcerados em presídios do governo.
Uribe negou-se a atender a todas as propostas internacionais recebidas com o objetivo de se chegar a um acordo que permitisse a troca. Não obstante essa atitude intransigente do presidente neofascista da Colômbia, as FARC, correspondendo a um novo apelo de Hugo Chávez, tomaram a decisão de libertar, também em gesto unilateral, quatro deputados em seu poder.
Mais uma vez a operação foi adiada porque o Exército, nas vésperas da data prevista, mobilizou poderosas forças, concentrando-as nos departamentos do Caquetá, do Meta e do Guaviare, onde as FARC estão bem implantadas e por onde, presumivelmente, os parlamentares poderiam passar. Era duplo o objetivo dessa iniciativa.
Se houvesse um choque direto, Uribe responsabilizaria as FARC pela morte dos deputados. Simultaneamente, os aviões espias, equipados com uma tecnologia que Washington somente proporciona a Israel, estiveram ativíssimos.
Os satélites americanos transmitiram informações valiosas a Bogotá, mas as FARC cumpriram mais uma vez, o que não impediu uma intensificação da campanha pró-libertação imediata de Ingrid Bettancourt. Essa exigência era, nas condições existentes, de impossível concretização. Uma mulher fragilizada, doente, não podia em hipótese alguma caminhar durante dias através de regiões selváticas, onde as tropas colombianas poderiam interceptar o comando por ela responsável.
Renovaram, portanto, as FARC, sua proposta para desmilitarização de Pradera e Florida, sem a qual o intercâmbio humanitário é inviável.
O herói caído em combate
O comandante Raul Reyes era, depois de Manuel Marulanda, o membro mais destacado do Secretariado e do Estado-Maior Central das FARC. Revolucionário desde a juventude – tinha atualmente 60 anos -, travou as primeiras lutas políticas como sindicalista. Elas foram uma iniciação para outras batalhas. Há mais de trinta anos, Luís Edgar Devia embrenhou-se nas montanhas, aderiu às FARC, tornou-se Raul Reyes.
Conheci-o em maio de 2001. Recebi um convite para passar algumas semanas no seu acampamento, próximo de San Vicente del Caguan, capital da então Zona Desmilitarizada. Aceitei com prazer.
Raul Reyes não impressionava pela aparência física. Baixo, levemente grisalho, tinha um timbre de voz suave. Mas logo na primeira noite, após o jantar, quando conversamos no seu posto de comando – um austero escritório, com uma mesa e duas cadeiras, instalado sob uma tenda oculta pelas altas copas da mata amazônica –, percebi que aquele guerrilheiro frágil era uma personalidade excepcional. Falamos do mundo em crise, antes de me oferecer livros e documentação como prólogo indispensável à abordagem da luta das FARC.
Era o responsável pelas conversações de paz que transcorriam naquelas semanas, no vilarejo de Los Pozos, com os representantes do governo do presidente Pastrana.
Corriam então os tempos em que Pastrana saudava Manuel Marulanda com abraços de Judas, dias em que vi embaixadores de países da União Européia a disputar as palavras e o sorriso do legendário Tirofijo, comandante supremo das FARC.
Viajei com Reyes para La Macarena, onde as FARC libertaram unilateralmente 304 soldados, policiais, prisioneiros de guerra, e tive o privilégio de manter com ele, nas madrugadas mornas da floresta, longos diálogos sobre a sua organização revolucionária, a América Latina e a estratégia do imperialismo estadunidense, o grande inimigo da humanidade. E também sobre a vida.
Escrevi no próprio acampamento artigos para o "Avante!", sobre os combatentes das FARC e uma entrevista também publicada pelo órgão do PCP.
A atmosfera tinha algo de irreal, porque os próprios textos eram transmitidos pela secretária de Raul para um destinatário, que depois os encaminhava ao jornal. A Internet, paradoxalmente, podia funcionar como instrumento ao serviço de uma guerrilha revolucionária. Para honra e proveito meu, Raul Reyes manteve o contato comigo. Com freqüência, recebia mensagens suas, por intermédio de comandantes amigos, por vezes agradecendo artigos que publicara sobre a luta das FARC.
Recordo que pouco antes do seqüestro no Equador do comandante Simon Trinidad – depois entregue por Uribe aos EUA –, sugeriu que voltasse à selva colombiana. O projeto foi então a pique porque a fronteira equatoriana se havia tornado muito insegura.
Até o seu último dia, Reyes foi a voz das FARC no diálogo com o mundo. Mas o comandante guerrilheiro, incumbido de incontáveis tarefas, encontrava ainda tempo para escrever artigos, alguns sobre complexas questões ideológicas, para a revista Resistência, órgão internacional das FARC, e para dar entrevistas a jornais da Europa, da América Latina, dos EUA. Nelas, o saber e a firmeza do comunista de têmpera tinham como complemento harmonioso a cultura do intelectual humanista.
Uribe festeja agora a morte do combatente que, nas palavras de homenagem de Jaime Caicedo, o secretário-geral do Partido Comunista Colombiano, foi um revolucionário exemplar que "entregou a vida pela causa em que acreditava".
O triunfalismo do presidente neofascista da Colômbia, que financiou o paramilitarismo quando governador de Antioquia e tem o seu nome na lista dos narcotraficantes elaborada pela Drug Enforcement Agency, dos EUA, mas é hoje o melhor aliado de Bush no continente, não tem o poder de fazer história.
A passagem pela presidência dos seus países de Uribe e de Bush deixará apenas memória de atos sombrios e de crimes contra a humanidade. A Marcha contra o Paramilitarismo e pela Paz na Colômbia, a realizar-se no dia 6 de Março, na Colômbia e em diferentes capitais da Europa e da América Latina, assume também agora o significado de uma homenagem póstuma a Raul Reyes. A solidariedade com aqueles que se batem e morrem por uma Colômbia democrática e progressista é, mais do que nunca, necessária.
Raul Reyes entra, ao desaparecer assassinado, no panteão dos heróis da América Latina. Como Sucre, como Bolívar, como Artigas, o Che, Raul Reyes ultrapassa a fronteira da única forma de eternidade possível, a dos homens que viveram para servir a humanidade e contribuir para que ela continue.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista português.
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"No hay regla del derecho internacional que prohiba la revolución"
Abogado estadounidense analiza estatus de la guerrilla
Paul Wolf: "Las Farc no son Terroristas".
Paul Wolf es un abogado estadounidense especialziado en derechos humanos.
Paul Wolf
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"Os terroristas não são os comunistas levantados em armas mas os governantes submetidos aos interesses imperialistas dos Estados Unidos."
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Fica a minha solidariedade pessoal nesta coluna aos palestinos e aos combatentes das Farc, ao qual jornalistas da Folha chamam de narco-guerrilheiros e terroristas...
*Lejeune Mirhan, sociólogo da Fundação Unesp, arabista e professor. Presidente do Sindicato dos Sociólogos, membro da Academia de Altos Estudos Ibero-árabe de Lisboa e da International Sociological Association
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Título: CARTA O BERRO.
Guerrilheiras das FARC- Enlace 1 - Enlace 2
Texto del artículo: Por Miguel Urbano Rodrigues
Fala-se e escreve-se muito dos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – quase sempre para os caluniar – e pouco das guerrilheiras. A maioria dos europeus ignora que milhares de mulheres combatem nas 60 Frentes em que as FARC lutam naquele país.
Conheci muitas em 2001, nas semanas vividas num acampamento amazônico da organização revolucionária.
Como transmitir, no breve espaço de uma crônica, o que ficou em mim do contato com esse novo tipo de guerreiras?
Encontrei ali moças tão diferentes que seria redutor o esforço para esboçar o choque emocional provocado pelo descobrimento das combatentes das FARC. De comum entre elas apenas a coragem, a capacidade de adaptação a condições de vida duríssimas e uma confiança total na justiça da luta das FARC e na vitória final, sem data.
No meu acampamento, somente uma não tinha companheiro. Apenas Eliana ultrapassara os 40. A maioria não atingira os 25 anos. A ética da guerrilha impunha normas que eram respeitadas. Se dois namorados pretendiam estabelecer uma relação amorosa informavam o comandante. A infidelidade não era tolerada pelo código da guerrilha. A pareja era autorizada a dormir na mesma caleta, o estrado-cama que, sob um toldo de plástico, na grande floresta, fazia as vezes de casa. O regulamento proibia também que os guerrilheiros, homens ou mulheres, mantivessem relações sexuais com hóspedes das FARC.
Mas não havia moralismo. Se um casal decidia pôr termo à relação comunicava essa decisão ao comandante. O gesto consumava a separação.
As mulheres realizavam os mesmos trabalhos que os homens, desde o treino militar à abertura das latrinas. Iguais direitos, tarefas idênticas.
O cotidiano dos acampamentos não permitia a privacidade a que hoje estamos acostumados na vida cotidiana. Na selva, infestada por transmissores de doenças perigosas, o banho diário é imprescindível à defesa da saúde. As mulheres banhavam-se no rio ao lado dos homens numa atmosfera de camaradagem e respeito que me impressionou. Elas de calcinhas, eles de cuecas. As normas do pudor, tal como as conhecemos, não podiam funcionar ali. Mas nunca, nem nos olhares nem nas palavras, testemunhei atitudes das quais transparecesse um comportamento machista.
Elas, tal como eles, tinham diferentes origens sociais. Algumas tinham vindo de grandes cidades, outras dos llanos ou dos vales quentes, outras ainda das terras frias da Cordilheira. A origem social transparecia mais no diálogo do que no comportamento, porque moças de famílias camponesas haviam adquirido uma sólida formação ideológica.
Para minha surpresa, quase todas eram bonitas.
Na Aula – o lugar onde, à noite, o coletivo da guerrilha se reunia para assistir a palestras e debater o tema com o “professor” convidado – tive a oportunidade de falar mais demoradamente com algumas que mal conhecia, como a Adriana e a Jenny.
O meu trabalho exigiu contatos muito freqüentes com quatro: a Gloria, a Eliana, a Yurleni e a Isabel.
Glória era a secretária sem titulo do comandante Raul Reyes. De origem pequeno-burguesa, adquirira uma formação marxista ampla, pouco comum. Era a responsável pelos computadores e pelas transmissões por rádio, serviços instalados num “escritório” que se diferenciava das caletas apenas pela sua maior dimensão. Enviava mensagens codificadas e decifrava as recebidas. A sua intimidade com o mundo da informática fazia de mim um aprendiz bisonho.
Era muito bonita e nem o uniforme lhe afetava a feminilidade. Foi durante as lentas viagens para El Caguan, através de uma estrada imprevisível que rompia as matas da região – ela guiava carros pesados como uma profissional – que soube do seu passado aquilo que me contou. O suficiente para eu entrever nela uma personagem de novela que irradiava uma intensa alegria de viver.
Em Eliana encontrei uma revolucionária de outro tipo. Responsável pela intendência, ocupava-se com zelo de tudo o que se relacionava com o abastecimento do acampamento. A sua beleza não era física. De meia idade, entroncada, brusca nos movimentos, alcançara o grau de subcomandante e o seu currículo de combatente dissipava dúvidas sobre os méritos da guerrilheira. Era de poucas falas, mas, ao volante de um caminhão, respondia com rapidez e segurança às perguntas que eu formulava sobre a história das FARC e a organização do acampamento.
Yurleni, a ranchera, projetava a imagem de uma jovem camponesa desinibida, faladora, com uma espontaneidade tocante. Passava o dia na cozinha, preparando as refeições dos convidados. Quando apreciávamos um prato de caça ou uma especialidade colombiana, reagia tão efusivamente que até comunicava o fato ao seu papagaio palrador, empoleirado num arbusto, ao lado do bidão da água, no terreiro por onde deambulavam galinhas e o quati, mascote da guerrilha. Yurleni tinha um companheiro, John, e dizia ser mais feliz do que algum dia pudera imaginar. Menina, tinha uma obsessão: ser soldado. Mas acabou nas FARC quando percebeu que era mentira o que delas contavam e que a guerrilha era, essa sim, um exército de heróis, como outro não existia.
Em Isabel, a historiadora, descobri uma romântica. Foi a ideologia, absorvida na universidade que a empurrou para as FARC. Encontrava-se no umbral de uma vida de comodidades, já com um mestrado e trabalhando numa organização internacional que lhe garantia um salário mensal de quase 2000 dólares quando…
Ela hesitava ao chegar aí e eu interrompia, tentando descer às raízes da opção que a fizera mudar de rumo.
— O tempo de reflexão foi breve —, respondia. — Eu sentia um nojo crescente pelo tipo de vida que se abria para mim. Não queria ser triturada pelo sistema. O apelo foi irresistível. Ajudada por amigos, vim parar nas FARC, que eu admirava sem as conhecer…
Isabel mantinha longas conversas comigo. Os temas ideológicos fascinavam-na e encontrou em mim um interlocutor. Após um ano, sentia-se ainda uma iniciada. Cumpria exemplarmente todas as tarefas, verifiquei que atirava muito bem, mas a insegurança atormentava-a.
A beleza de Isabel chamava a atenção pela suavidade. Tinha uma pele muito branca, uns olhos enormes, luminosos e um corpo onde tudo parecia certo pela forma e a proporção. Do conjunto desprendia-se irrealidade.
Um dia perguntei-lhe por que, sendo tão bela, não tinha companheiro.
Levou tempo a responder:
— Sabes, isso me faz sofrer. Mas não pelo que possas pensar. Alguns camaradas já me perguntaram por que os recusei. Pensam que é uma atitude de classe, mas o motivo é outro. Eu faço uma idéia muito grande do amor e ainda não encontrei alguém que me abra a ele…
Naturalmente Gloria, Eliana, Jenny, Adriana, Yurleni, Isabel eram nomes de guerra. Desconheço-lhes os nomes reais.
Na sede das FARC, em San Vicente del Caguan, conheci outra guerrilheira, a Nora, da qual conservo, nítida, na memória, a lembrança de alguém que me apareceu como símbolo das mulheres das FARC.
Ela estava então na legalidade relativa da época e por isso publiquei-lhe o retrato numa reportagem. O companheiro tinha caído em combate pouco antes.
Nora atendia na recepção todos os estrangeiros que chegavam à Zona Desmilitarizada. Apareciam ali muitos jornalistas que pretendiam entrevistas com os dirigentes mais destacados das FARC, incluindo Manuel Marulanda, o legendário Tiro Fijo cuja morte fora anunciada vinte vezes por sucessivos governos. Era difícil a tarefa, mas Nora resolvia os problemas mais delicados. A voz e a doçura da guerrilheira desarmavam o protesto, quando os visitantes não obtinham o que pretendiam. Fundia uma suavidade tocante numa firmeza de combatente veterana.
Fechava-se quando as minhas perguntas incidiam sobre o seu mundo interior. Nunca me falou do companheiro perdido, mas a palavra tristeza subia na minha memória quando a escutava. No dia em que me despedi dei-lhe um par de botas e uma lanterna. Indispensáveis na selva, não teriam mais utilidade para mim.— Podem ser úteis para algum camarada — comentei, quase envergonhado.
Nora abraçou-me, sem uma palavra, e o seu gracias compañero chegou acompanhado do único sorriso que lhe vi esboçar naqueles dias.
Hoje, quando leio ou escuto calúnias sobre as FARC, o meu pensamento viaja para as selvas e montanhas da Colômbia. No turbilhão de imagens que então me envolve, não é sem comovida admiração que revejo as guerrilheiras que ali conheci. Aquelas mulheres aparecem-me como símbolo da confiança na transformação revolucionária da vida.
Fonte: http://resistir.info/mur/guerrilheiras_farc.html (ENLACE 1)
Esta página faz parte do sítio Pausa para a Filosofia
(Texto original em http://www.avante.pt/ ENLACE 2, sitio web DEL PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÉS )
Artículo de http://www.profesionalespcm.org/index.html insertado por: El administrador web - Fecha: 04/12/2004
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postato da La Pasionaria Selénia alle lunedì, marzo 03, 2008
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Abogado estadounidense analiza estatus de la guerrilla
Paul Wolf: "Las Farc no son Terroristas".
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*Lejeune Mirhan, sociólogo da Fundação Unesp, arabista e professor. Presidente do Sindicato dos Sociólogos, membro da Academia de Altos Estudos Ibero-árabe de Lisboa e da International Sociological Association
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Título: CARTA O BERRO.
Guerrilheiras das FARC- Enlace 1 - Enlace 2
Texto del artículo: Por Miguel Urbano Rodrigues
Fala-se e escreve-se muito dos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – quase sempre para os caluniar – e pouco das guerrilheiras. A maioria dos europeus ignora que milhares de mulheres combatem nas 60 Frentes em que as FARC lutam naquele país.
Conheci muitas em 2001, nas semanas vividas num acampamento amazônico da organização revolucionária.
Como transmitir, no breve espaço de uma crônica, o que ficou em mim do contato com esse novo tipo de guerreiras?
Encontrei ali moças tão diferentes que seria redutor o esforço para esboçar o choque emocional provocado pelo descobrimento das combatentes das FARC. De comum entre elas apenas a coragem, a capacidade de adaptação a condições de vida duríssimas e uma confiança total na justiça da luta das FARC e na vitória final, sem data.
No meu acampamento, somente uma não tinha companheiro. Apenas Eliana ultrapassara os 40. A maioria não atingira os 25 anos. A ética da guerrilha impunha normas que eram respeitadas. Se dois namorados pretendiam estabelecer uma relação amorosa informavam o comandante. A infidelidade não era tolerada pelo código da guerrilha. A pareja era autorizada a dormir na mesma caleta, o estrado-cama que, sob um toldo de plástico, na grande floresta, fazia as vezes de casa. O regulamento proibia também que os guerrilheiros, homens ou mulheres, mantivessem relações sexuais com hóspedes das FARC.
Mas não havia moralismo. Se um casal decidia pôr termo à relação comunicava essa decisão ao comandante. O gesto consumava a separação.
As mulheres realizavam os mesmos trabalhos que os homens, desde o treino militar à abertura das latrinas. Iguais direitos, tarefas idênticas.
O cotidiano dos acampamentos não permitia a privacidade a que hoje estamos acostumados na vida cotidiana. Na selva, infestada por transmissores de doenças perigosas, o banho diário é imprescindível à defesa da saúde. As mulheres banhavam-se no rio ao lado dos homens numa atmosfera de camaradagem e respeito que me impressionou. Elas de calcinhas, eles de cuecas. As normas do pudor, tal como as conhecemos, não podiam funcionar ali. Mas nunca, nem nos olhares nem nas palavras, testemunhei atitudes das quais transparecesse um comportamento machista.
Elas, tal como eles, tinham diferentes origens sociais. Algumas tinham vindo de grandes cidades, outras dos llanos ou dos vales quentes, outras ainda das terras frias da Cordilheira. A origem social transparecia mais no diálogo do que no comportamento, porque moças de famílias camponesas haviam adquirido uma sólida formação ideológica.
Para minha surpresa, quase todas eram bonitas.
Na Aula – o lugar onde, à noite, o coletivo da guerrilha se reunia para assistir a palestras e debater o tema com o “professor” convidado – tive a oportunidade de falar mais demoradamente com algumas que mal conhecia, como a Adriana e a Jenny.
O meu trabalho exigiu contatos muito freqüentes com quatro: a Gloria, a Eliana, a Yurleni e a Isabel.
Glória era a secretária sem titulo do comandante Raul Reyes. De origem pequeno-burguesa, adquirira uma formação marxista ampla, pouco comum. Era a responsável pelos computadores e pelas transmissões por rádio, serviços instalados num “escritório” que se diferenciava das caletas apenas pela sua maior dimensão. Enviava mensagens codificadas e decifrava as recebidas. A sua intimidade com o mundo da informática fazia de mim um aprendiz bisonho.
Era muito bonita e nem o uniforme lhe afetava a feminilidade. Foi durante as lentas viagens para El Caguan, através de uma estrada imprevisível que rompia as matas da região – ela guiava carros pesados como uma profissional – que soube do seu passado aquilo que me contou. O suficiente para eu entrever nela uma personagem de novela que irradiava uma intensa alegria de viver.
Em Eliana encontrei uma revolucionária de outro tipo. Responsável pela intendência, ocupava-se com zelo de tudo o que se relacionava com o abastecimento do acampamento. A sua beleza não era física. De meia idade, entroncada, brusca nos movimentos, alcançara o grau de subcomandante e o seu currículo de combatente dissipava dúvidas sobre os méritos da guerrilheira. Era de poucas falas, mas, ao volante de um caminhão, respondia com rapidez e segurança às perguntas que eu formulava sobre a história das FARC e a organização do acampamento.
Yurleni, a ranchera, projetava a imagem de uma jovem camponesa desinibida, faladora, com uma espontaneidade tocante. Passava o dia na cozinha, preparando as refeições dos convidados. Quando apreciávamos um prato de caça ou uma especialidade colombiana, reagia tão efusivamente que até comunicava o fato ao seu papagaio palrador, empoleirado num arbusto, ao lado do bidão da água, no terreiro por onde deambulavam galinhas e o quati, mascote da guerrilha. Yurleni tinha um companheiro, John, e dizia ser mais feliz do que algum dia pudera imaginar. Menina, tinha uma obsessão: ser soldado. Mas acabou nas FARC quando percebeu que era mentira o que delas contavam e que a guerrilha era, essa sim, um exército de heróis, como outro não existia.
Em Isabel, a historiadora, descobri uma romântica. Foi a ideologia, absorvida na universidade que a empurrou para as FARC. Encontrava-se no umbral de uma vida de comodidades, já com um mestrado e trabalhando numa organização internacional que lhe garantia um salário mensal de quase 2000 dólares quando…
Ela hesitava ao chegar aí e eu interrompia, tentando descer às raízes da opção que a fizera mudar de rumo.
— O tempo de reflexão foi breve —, respondia. — Eu sentia um nojo crescente pelo tipo de vida que se abria para mim. Não queria ser triturada pelo sistema. O apelo foi irresistível. Ajudada por amigos, vim parar nas FARC, que eu admirava sem as conhecer…
Isabel mantinha longas conversas comigo. Os temas ideológicos fascinavam-na e encontrou em mim um interlocutor. Após um ano, sentia-se ainda uma iniciada. Cumpria exemplarmente todas as tarefas, verifiquei que atirava muito bem, mas a insegurança atormentava-a.
A beleza de Isabel chamava a atenção pela suavidade. Tinha uma pele muito branca, uns olhos enormes, luminosos e um corpo onde tudo parecia certo pela forma e a proporção. Do conjunto desprendia-se irrealidade.
Um dia perguntei-lhe por que, sendo tão bela, não tinha companheiro.
Levou tempo a responder:
— Sabes, isso me faz sofrer. Mas não pelo que possas pensar. Alguns camaradas já me perguntaram por que os recusei. Pensam que é uma atitude de classe, mas o motivo é outro. Eu faço uma idéia muito grande do amor e ainda não encontrei alguém que me abra a ele…
Naturalmente Gloria, Eliana, Jenny, Adriana, Yurleni, Isabel eram nomes de guerra. Desconheço-lhes os nomes reais.
Na sede das FARC, em San Vicente del Caguan, conheci outra guerrilheira, a Nora, da qual conservo, nítida, na memória, a lembrança de alguém que me apareceu como símbolo das mulheres das FARC.
Ela estava então na legalidade relativa da época e por isso publiquei-lhe o retrato numa reportagem. O companheiro tinha caído em combate pouco antes.
Nora atendia na recepção todos os estrangeiros que chegavam à Zona Desmilitarizada. Apareciam ali muitos jornalistas que pretendiam entrevistas com os dirigentes mais destacados das FARC, incluindo Manuel Marulanda, o legendário Tiro Fijo cuja morte fora anunciada vinte vezes por sucessivos governos. Era difícil a tarefa, mas Nora resolvia os problemas mais delicados. A voz e a doçura da guerrilheira desarmavam o protesto, quando os visitantes não obtinham o que pretendiam. Fundia uma suavidade tocante numa firmeza de combatente veterana.
Fechava-se quando as minhas perguntas incidiam sobre o seu mundo interior. Nunca me falou do companheiro perdido, mas a palavra tristeza subia na minha memória quando a escutava. No dia em que me despedi dei-lhe um par de botas e uma lanterna. Indispensáveis na selva, não teriam mais utilidade para mim.— Podem ser úteis para algum camarada — comentei, quase envergonhado.
Nora abraçou-me, sem uma palavra, e o seu gracias compañero chegou acompanhado do único sorriso que lhe vi esboçar naqueles dias.
Hoje, quando leio ou escuto calúnias sobre as FARC, o meu pensamento viaja para as selvas e montanhas da Colômbia. No turbilhão de imagens que então me envolve, não é sem comovida admiração que revejo as guerrilheiras que ali conheci. Aquelas mulheres aparecem-me como símbolo da confiança na transformação revolucionária da vida.
Fonte: http://resistir.info/mur/guerrilheiras_farc.html (ENLACE 1)
Esta página faz parte do sítio Pausa para a Filosofia
(Texto original em http://www.avante.pt/ ENLACE 2, sitio web DEL PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÉS )
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