24 de junho de 2007
Mino Carta comenta assassinato de Lamarca pela matilha de perseguidores do Exército Brasileiro
O Blog do Mino – leia-se Mino Carta – comenta que, pela reação da mídia à indenização dada à viúva do capitão Carlos Lamarca pela Comissão da Anistia, o tempo não passou. Os artiguetes e editoriais evidenciam o sabujismo tradicional da mídia em relação às Forças Armadas.
Já foi provado que Lamarca foi fuzilado à sombra de uma árvore por uma matilha de perseguidores comandada pelo capitão Nilton Cerqueira, hoje general. Os primeiros três tiros o atingiram pelas costas e mais quatro o alvejaram quando já estava caído e sem ação. Não houve combate, houve um frio assassinato. O post de Mino Carta é brilhante.
http://blogdomino.blig.ig.com.br/
Só falta convocar a Marcha
por Mino Carta
As reações da mídia à indenização dada à viúva de Lamarca pela Comissão de Anistia mostram que o tempo não passou
Memórias dos tempos idos. Estamos em 1971, dirijo a redação de Veja e Octavio Ribeiro, o Pena Branca por obra de uma mecha que logo acima da testa sulca-lhe o cabelo preto, recebe de um oficial do Cenimar, no Rio de Janeiro, cópias de cartas manuscritas de Carlos Lamarca à namorada Iara Iavelberg. Naquele momento ambos já morreram, assassinados por agentes da ditadura.
Ela antes dele, suicida segundo as autoridades de plantão, de verdade, como ficará provado, morta por uma bala que jamais poderia ter disparado. Lamarca foi fuzilado à sombra de uma das ralas árvores da caatinga, por uma matilha de perseguidores, comandada por um capitão, Nilton Cerqueira, hoje general.
Lamarca vinha de uma fuga de centenas de quilômetros pelo sertão, os primeiros três tiros o atingiram pelas costas e mais quatro o alvejaram quando já estava caído e sem ação. Dos 16 companheiros que o seguiram inicialmente, sobrara um apenas. Combate não houve, mas o frio assassínio.
As cartas foram publicadas, 36 anos atrás, e trechos de uma delas saíram na capa de Veja. Eram textos exaltados, da lavra de alguém disposto inexoravelmente a mergulhar em ilusões.
A Veja naquele tempo ia às bancas na segunda-feira e, ao meio-dia, três janízaros à paisana invadiram minha salinha e me carregaram para uma C-14, o veículo preferido pelo DOI-Codi. Primeiro fui conduzido até a sede da PF do bairro de Higienópolis, onde permaneci por umas duas horas em companhia de meliantes de medíocres calibres. Depois fui transferido para o QG do II Exército, não sem antes ouvir da boca de um censor conhecido nos tempos em que dirigia o Jornal da Tarde, sussurrada a frase no meu ouvido enquanto deixava a delegacia: “Desta vez é grave”.
Fiquei em uma cela forrada de aço escovado por mais um punhado de horas, até ser levado à presença de um coronel de aspecto teutônico e de sobrenome Herar. Perguntou: “O senhor sabe por que se encontra aqui?” Respondi ignorar. Disse: “A revista que o senhor dirige publicou material subversivo”. Retruquei: “Fornecido a um repórter da sucursal carioca por um colega seu do Cenimar”.
Olhou-me intrigado. Insisti, e sugeri que ligasse para o próprio. Pediu cortesmente licença e retirou-se por um tempo. Voltou e admitiu: “É verdade, o senhor pode retirar-se em liberdade”. Eram nove horas da noite e fui tomar canja no restaurante do Giovanni Bruno. Até hoje me pergunto quais foram as razões do homem do Cenimar ao entregar as cartas ao Pena Branca. De quem me lembro com saudade. Foi-se há muito tempo, era figura excelente e repórter de primeira.
Tempos difíceis, aqueles, sobretudo para jornalistas sob censura. Não perco, aliás, a oportunidade de lembrar que a maioria não estava. De todo modo, corte para os dias de hoje. Li na sexta passada o editorial da Folha de S.Paulo, intitulado “O caso Lamarca”. Li no sábado o editorial do Estadão, intitulado “Prêmio ao facínora desertor”. Li um breve texto de Veja, intitulado “O Bolsa Terrorismo”.
Segundo a Folha, a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça representa um prêmio à deserção, a qual, se bem interpreto, justificaria o fuzilamento. É da percepção até do mundo mineral que Lamarca não foi desertor. Se quiserem, amotinado. A quem sustenta que a pena de morte se condiz a desertores, sugiro, em dias de lazer, a visão de um filme de Stanley Kubrick, Glória Feita de Sangue. Conta uma história de deserção da Primeira Guerra Mundial.
Segundo o Estado, o propósito de Lamarca desertor, terrorista, torturador e assassino, era implantar no Brasil uma ditadura mais cruel e liberticida do que a que desabara sobre nós com o golpe de 1964. O jornal chega a evocar com simpatia adversários do regime militar que “contribuíram para o processo de redemocratização” e define como “memorável” o movimento das Diretas Já. Esquece ter implorado o golpe e condenado o movimento.
A Veja atinge o paroxismo. Lamarca “foi morto em combate por militares que cumpriam o dever de detê-lo”, mas o “terrorista” é agora “transubstanciado” em mártir nacional. Papa Ratzinger gostaria deste verbo, transubstanciar. Quanto à Comissão de Anistia, “parece movida pela ideologia de esquerda”.
Em geral, os editoriais e o artiguete de Veja evidenciam o sabujismo tradicional em relação às Forças Armadas. E algo mais. A forma e o conteúdo, o tom e a letra, mostram que o tempo não passou.
Não se trata de tomar o partido da ditadura ou de Lamarca. Bastaria, quem sabe, admitir que este foi resultado daquela. E que a ditadura, a ser condenada in limine por espíritos autenticamente democráticos, foi um monstruoso passo atrás na história brasileira, pelo qual pagamos até hoje. Ocorre, porém, a julgar pelas reações da chamada grande imprensa, que os chavões oligárquicos continuam alerta. Só falta convocar a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade.
Já foi provado que Lamarca foi fuzilado à sombra de uma árvore por uma matilha de perseguidores comandada pelo capitão Nilton Cerqueira, hoje general. Os primeiros três tiros o atingiram pelas costas e mais quatro o alvejaram quando já estava caído e sem ação. Não houve combate, houve um frio assassinato. O post de Mino Carta é brilhante.
http://blogdomino.blig.ig.com.br/
Só falta convocar a Marcha
por Mino Carta
As reações da mídia à indenização dada à viúva de Lamarca pela Comissão de Anistia mostram que o tempo não passou
Memórias dos tempos idos. Estamos em 1971, dirijo a redação de Veja e Octavio Ribeiro, o Pena Branca por obra de uma mecha que logo acima da testa sulca-lhe o cabelo preto, recebe de um oficial do Cenimar, no Rio de Janeiro, cópias de cartas manuscritas de Carlos Lamarca à namorada Iara Iavelberg. Naquele momento ambos já morreram, assassinados por agentes da ditadura.
Ela antes dele, suicida segundo as autoridades de plantão, de verdade, como ficará provado, morta por uma bala que jamais poderia ter disparado. Lamarca foi fuzilado à sombra de uma das ralas árvores da caatinga, por uma matilha de perseguidores, comandada por um capitão, Nilton Cerqueira, hoje general.
Lamarca vinha de uma fuga de centenas de quilômetros pelo sertão, os primeiros três tiros o atingiram pelas costas e mais quatro o alvejaram quando já estava caído e sem ação. Dos 16 companheiros que o seguiram inicialmente, sobrara um apenas. Combate não houve, mas o frio assassínio.
As cartas foram publicadas, 36 anos atrás, e trechos de uma delas saíram na capa de Veja. Eram textos exaltados, da lavra de alguém disposto inexoravelmente a mergulhar em ilusões.
A Veja naquele tempo ia às bancas na segunda-feira e, ao meio-dia, três janízaros à paisana invadiram minha salinha e me carregaram para uma C-14, o veículo preferido pelo DOI-Codi. Primeiro fui conduzido até a sede da PF do bairro de Higienópolis, onde permaneci por umas duas horas em companhia de meliantes de medíocres calibres. Depois fui transferido para o QG do II Exército, não sem antes ouvir da boca de um censor conhecido nos tempos em que dirigia o Jornal da Tarde, sussurrada a frase no meu ouvido enquanto deixava a delegacia: “Desta vez é grave”.
Fiquei em uma cela forrada de aço escovado por mais um punhado de horas, até ser levado à presença de um coronel de aspecto teutônico e de sobrenome Herar. Perguntou: “O senhor sabe por que se encontra aqui?” Respondi ignorar. Disse: “A revista que o senhor dirige publicou material subversivo”. Retruquei: “Fornecido a um repórter da sucursal carioca por um colega seu do Cenimar”.
Olhou-me intrigado. Insisti, e sugeri que ligasse para o próprio. Pediu cortesmente licença e retirou-se por um tempo. Voltou e admitiu: “É verdade, o senhor pode retirar-se em liberdade”. Eram nove horas da noite e fui tomar canja no restaurante do Giovanni Bruno. Até hoje me pergunto quais foram as razões do homem do Cenimar ao entregar as cartas ao Pena Branca. De quem me lembro com saudade. Foi-se há muito tempo, era figura excelente e repórter de primeira.
Tempos difíceis, aqueles, sobretudo para jornalistas sob censura. Não perco, aliás, a oportunidade de lembrar que a maioria não estava. De todo modo, corte para os dias de hoje. Li na sexta passada o editorial da Folha de S.Paulo, intitulado “O caso Lamarca”. Li no sábado o editorial do Estadão, intitulado “Prêmio ao facínora desertor”. Li um breve texto de Veja, intitulado “O Bolsa Terrorismo”.
Segundo a Folha, a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça representa um prêmio à deserção, a qual, se bem interpreto, justificaria o fuzilamento. É da percepção até do mundo mineral que Lamarca não foi desertor. Se quiserem, amotinado. A quem sustenta que a pena de morte se condiz a desertores, sugiro, em dias de lazer, a visão de um filme de Stanley Kubrick, Glória Feita de Sangue. Conta uma história de deserção da Primeira Guerra Mundial.
Segundo o Estado, o propósito de Lamarca desertor, terrorista, torturador e assassino, era implantar no Brasil uma ditadura mais cruel e liberticida do que a que desabara sobre nós com o golpe de 1964. O jornal chega a evocar com simpatia adversários do regime militar que “contribuíram para o processo de redemocratização” e define como “memorável” o movimento das Diretas Já. Esquece ter implorado o golpe e condenado o movimento.
A Veja atinge o paroxismo. Lamarca “foi morto em combate por militares que cumpriam o dever de detê-lo”, mas o “terrorista” é agora “transubstanciado” em mártir nacional. Papa Ratzinger gostaria deste verbo, transubstanciar. Quanto à Comissão de Anistia, “parece movida pela ideologia de esquerda”.
Em geral, os editoriais e o artiguete de Veja evidenciam o sabujismo tradicional em relação às Forças Armadas. E algo mais. A forma e o conteúdo, o tom e a letra, mostram que o tempo não passou.
Não se trata de tomar o partido da ditadura ou de Lamarca. Bastaria, quem sabe, admitir que este foi resultado daquela. E que a ditadura, a ser condenada in limine por espíritos autenticamente democráticos, foi um monstruoso passo atrás na história brasileira, pelo qual pagamos até hoje. Ocorre, porém, a julgar pelas reações da chamada grande imprensa, que os chavões oligárquicos continuam alerta. Só falta convocar a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade.