30 de junho de 2007
O dia em que as igrejas celebraram Lamarca como mártir e herói nacional
Dom Frei Luíz Flávio Cappio, bispo da Diocese de Barra, aquele da greve de fome contra a transposição das águas do rio São Francisco, em setembro de 2001, organizou no sertão da Bahia um movimento para resgatar a memória de Lamarca, Zequinha, Otoniel e Santa Bárbara, todos assassinados pelo Exército em 1971, como mártires da igreja e da luta de libertação do povo brasileiro.
O jornalista e escritor Emiliano José (PT), à época vereador por Salvador foi convidado e participou do culto ecumênico celebrado na caatinga. Registrei o acontecido no Boletim do Mandato 49, de outubro de 2001. Acompanhei a romaria e nunca consegui que a imprensa registrasse o acontecido. Afinal, duas mil pessoas, vindas de 19 paróquias da Diocese de Barra, em romaria com uma cruz na caatinga, eram um fato inusitado. Nada, nem uma linha.
SEGUE O TEXTO DO BOLETIM DO MANDATO:
Para resgatar a memória e passar a limpo a história de terror vivida pelo povo da região de Brotas de Macaúbas, onde há 30 anos Lamarca e seus companheiros foram executados pelos militares, no auge da ditadura, a Diocese de Barra organizou um ato ecumênico chamado "Vidas pelas Vida", convidou pastores evangélicos, o MST e ongs dedicadas à organização do povo.
A celebração ecumênica aconteceu dia 29 de setembro (sábado), num altar montado na carroceria de um caminhão, estacionado no meio da praça do pequeno povoado de Pintada, município de Ipupiara.
"A causa é que faz o mártir" (Santo Agostinho)
O texto do informativo "Vidas pela Vida", distribuído pela Diocese de Barra, aos presentes citou Santo Agostinho: "A causa é que faz o mártir" para explicar que "quem foi morto defendendo a causa da justiça, da democracia e da reforma agrária é um mártir, mesmo que sua militância não seja dentro da igreja ou religião. Queremos celebrar a vida e a morte de nossos mártires, como um reconhecimento de seu exemplo e como compromisso com a causa pela qual derramaram o sangue".
Mártires da Igreja
Bem cedo pela manhã, dom Frei Luíz Flávio, bispo da Diocese de Barra, o pastor Djalma Torres, da Igreja Batista Nazareth, de Salvador, e o pastor João Dias Araújo, da Igreja Presbiteriana Unida, de Feira de Santana, iniciaram o culto com o anunciado propósito de "resgatar a memória dos mártires da Diocese". Coube à Irmã Marina a leitura da Bíblia Sagrada: "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos que ama" (João, 15). Seguida do cântico que dizia "prova de amor maior não há".
Quem são os mártires?
Os mártires celebrados são o capitão Carlos Lamarca, apresentado como um herói nacional; José Campos Barreto (Zequinha), que morreu em Pintada junto com Lamarca; seu irmão Otoniel Campos Barreto, que morreu fuzilado pelas costas tentando a fuga; Luíz Antônio Santa Bárbara, que se “suicidou” para não cair nas mãos dos militares. Outros dois militantes da luta pela terra na Bahia foram lembrados: Manoel Dias, assassinado em 1982 pelo grileiro Leão Diniz e 30 pistoleiros, em Boa Vista do Procópio, e Josael de Lima (Jota), assassinado em 1986, com um tiro no peito, a mando do grileiro Leão Diniz.
Ofertório de forte simbolismo
Na celebração, homens e mulheres ofertaram um punhado da terra colhida no local onde Lamarca, com as forças exauridas e imobilizado, foi metralhado a sangue frio. Uns ofertaram beiju, frutas, hortaliças, militantes do MST ofertaram a bandeira vermelha dos sem-terra, a bandeira do Brasil, a Constituição Brasileira e flores. Emiliano José ofertou um exemplar do livro "Lamarca, O Capitão da Guerrilha".
Familiares e testemunhas presentes
Foram momentos de forte emoção. D.Zefa, viúva de Jota, leu uma carta enviada na época em solidariedade à família, por Emiliano José. João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, leu uma mensagem do ator Paulo Betti, que representou o capitão no filme "Lamarca", de Sérgio Rezende. Irmã Marina leu um poema enviado por dom Pedro Casaldáliga. Osvaldo Dias falou sobre o irmão assassinado, César Benjamin leu uma mensagem enviada do Rio de Janeiro pela viúva de Lamarca, Maria Pavan, e seus filhos César e Cláudia.
Olderico Campos Barreto, irmão de Zequinha, sobrevivente do tiroteio e das torturas, falou das mutilações sofridas pelos irmãos mortos, de como seu velho pai foi dependurado de cabeça para baixo. Olderico lembrou Iara Iavelberg, companheira de amor e luta de Lamarca, morta em Salvador, pouco antes do sangrento desfecho no sertão. Lá estavam D. Maria Santa Bárbara e Luíz, mãe e irmão de Luíz Antônio Santa Bárbara.
A palavra das igrejas
Palavras do bispo dom Frei Luíz:
"Irmãos e irmãs, neste momento a Diocese de Barra abre solenemente a celebração "Vidas pela Vida". Quando idealizamos esta celebração tínhamos em mente três grandes motivos.
Em primeiro lugar, pedir perdão a Deus pela grande injustiça que cometemos tirando a vida de homens que lutavam pela justiça. O sangue de nossos heróis deve ser lavado, nosso primeiro grande motivo é penitencial.
O segundo grande motivo é de ação de graças. Queremos agradecer a Deus por nos ter dado a graça de conhecermos pessoas tão grandes, tão importantes, que nos deram um exemplo maravilhoso de terem tido a coragem de derramar seu sangue, doarem suas vidas, para a construção de um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais solidário.
O terceiro motivo que nos une é aprender com eles uma grande lição de vida. Os mártires são pedras vivas da construção da Igreja, da construção do mundo, são eles as pedras angulares do novo tempo. E somente no resgate do passado, no passar a limpo o passado, teremos condições de construir o futuro com mais consciência e espírito cidadão.
Palavras do pastor Djalma Torres
"A mim coube comentar a leitura da Bíblia, mas antes quero agradecer a honra e privilégio de estar presente a esta celebração, parabenizar a Diocese de Barra, na pessoa de seu bispo dom Frei Luíz, pela coragem e pelo desafio que nos apresenta, a todos nós, católicos e protestantes, para que nos juntemos em ato de clamor, numa convocação a todo o povo de Deus, para que neste país se estabeleça o império da justiça".
Palavras do pastor João Dias
"Estamos alegres, porque nos reunimos para celebrar hoje a vitória de Nosso Senhor Jesus Cristo, expressa na vida dos mártires desta terra, aqueles que morreram, que tombaram na luta em favor de dias melhores para o povo. O sangue dos mártires é a sementeira da História. Estes nossos irmãos que tombaram nesta terra seguiram o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que deu sua vida em favor de todos nós. Vamos todos seguir os exemplos de Jesus e dos mártires para prosseguirmos na luta pela libertação de todo o povo".
"Lamarca não morreu, Lamarca vive"
Terminada a celebração, em romaria, a multidão seguiu um camponês que, em penitência, carregou nos ombros a pedra em que Lamarca repousou a cabeça antes da morte. Com orações, cânticos, palmas e velas acesas, todos caminharam até o pé da ressequida baraúna, em cuja sombra Lamarca e Zequinha descansaram seus últimos momentos, depois seguiram em direção a uma enorme cruz, erguida no meio da caatinga, poucos metros adiante, no exato local onde Zequinha caiu varado de balas. E os militantes do MST repetiam: "Lamarca não morreu, Lamarca vive".
As palavras de Emiliano José
(À sombra da baraúna no lugar onde Lamarca tombou)
Esta celebração “Vidas pela Vida” teve para mim, pessoalmente, uma importância muito grande. Há quase 30 anos eu acompanho a história de Lamarca. Na época da ditadura militar, eu e Olderico Campos Barreto, estivemos presos juntos na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador.
Na prisão, eu ouvia fascinado os relatos de Olderico sobre a luta que se travou nesta região. Ao sair da prisão, continuei pesquisando e, em parceria com o jornalista Oldack Miranda, lancei em 1981 o livro “Lamarca, O Capitão da Guerrilha”, que já inspirou os filmes “Portas de Fogo”, do cineasta Edgard Navarro, e “Lamarca”, de Sérgio Rezende.
É com muita emoção que vejo o resgate da pessoa de Lamarca, Zequinha e seus companheiros. Lamarca aqui era nome maldito, fruto do trabalho de terror das forças militares e das elites locais. Aqui houve tempo que só se falava de Lamarca com medo, as pessoas tremiam.
Agora é diferente, graças à coragem de dom Frei Luíz, ao denodo de Adriano Martins, do Centro de Assessoria de Assuruã, às presenças dos pastores Djalma Torres e João Dias. Graças também ao trabalho dos agentes pastorais, dos religiosos, dos líderes comunitários locais, não vamos nos lembrar dos assassinos, dos terroristas militares, dos que aqui plantaram sementes de ódio e medo, mas vamos nos lembrar, sim, dos mártires, dos que plantaram sementes de esperança.
É bom lembrar que tudo aquilo que Lamarca dizia da região continua existindo. A fome, a dureza da seca, a migração, a inexistência da reforma agrária, a terra que não é repartida, então, quando lembrarmos de nossos mártires, devemos dizer que a luta continua".
O jornalista e escritor Emiliano José (PT), à época vereador por Salvador foi convidado e participou do culto ecumênico celebrado na caatinga. Registrei o acontecido no Boletim do Mandato 49, de outubro de 2001. Acompanhei a romaria e nunca consegui que a imprensa registrasse o acontecido. Afinal, duas mil pessoas, vindas de 19 paróquias da Diocese de Barra, em romaria com uma cruz na caatinga, eram um fato inusitado. Nada, nem uma linha.
SEGUE O TEXTO DO BOLETIM DO MANDATO:
Para resgatar a memória e passar a limpo a história de terror vivida pelo povo da região de Brotas de Macaúbas, onde há 30 anos Lamarca e seus companheiros foram executados pelos militares, no auge da ditadura, a Diocese de Barra organizou um ato ecumênico chamado "Vidas pelas Vida", convidou pastores evangélicos, o MST e ongs dedicadas à organização do povo.
A celebração ecumênica aconteceu dia 29 de setembro (sábado), num altar montado na carroceria de um caminhão, estacionado no meio da praça do pequeno povoado de Pintada, município de Ipupiara.
"A causa é que faz o mártir" (Santo Agostinho)
O texto do informativo "Vidas pela Vida", distribuído pela Diocese de Barra, aos presentes citou Santo Agostinho: "A causa é que faz o mártir" para explicar que "quem foi morto defendendo a causa da justiça, da democracia e da reforma agrária é um mártir, mesmo que sua militância não seja dentro da igreja ou religião. Queremos celebrar a vida e a morte de nossos mártires, como um reconhecimento de seu exemplo e como compromisso com a causa pela qual derramaram o sangue".
Mártires da Igreja
Bem cedo pela manhã, dom Frei Luíz Flávio, bispo da Diocese de Barra, o pastor Djalma Torres, da Igreja Batista Nazareth, de Salvador, e o pastor João Dias Araújo, da Igreja Presbiteriana Unida, de Feira de Santana, iniciaram o culto com o anunciado propósito de "resgatar a memória dos mártires da Diocese". Coube à Irmã Marina a leitura da Bíblia Sagrada: "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos que ama" (João, 15). Seguida do cântico que dizia "prova de amor maior não há".
Quem são os mártires?
Os mártires celebrados são o capitão Carlos Lamarca, apresentado como um herói nacional; José Campos Barreto (Zequinha), que morreu em Pintada junto com Lamarca; seu irmão Otoniel Campos Barreto, que morreu fuzilado pelas costas tentando a fuga; Luíz Antônio Santa Bárbara, que se “suicidou” para não cair nas mãos dos militares. Outros dois militantes da luta pela terra na Bahia foram lembrados: Manoel Dias, assassinado em 1982 pelo grileiro Leão Diniz e 30 pistoleiros, em Boa Vista do Procópio, e Josael de Lima (Jota), assassinado em 1986, com um tiro no peito, a mando do grileiro Leão Diniz.
Ofertório de forte simbolismo
Na celebração, homens e mulheres ofertaram um punhado da terra colhida no local onde Lamarca, com as forças exauridas e imobilizado, foi metralhado a sangue frio. Uns ofertaram beiju, frutas, hortaliças, militantes do MST ofertaram a bandeira vermelha dos sem-terra, a bandeira do Brasil, a Constituição Brasileira e flores. Emiliano José ofertou um exemplar do livro "Lamarca, O Capitão da Guerrilha".
Familiares e testemunhas presentes
Foram momentos de forte emoção. D.Zefa, viúva de Jota, leu uma carta enviada na época em solidariedade à família, por Emiliano José. João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, leu uma mensagem do ator Paulo Betti, que representou o capitão no filme "Lamarca", de Sérgio Rezende. Irmã Marina leu um poema enviado por dom Pedro Casaldáliga. Osvaldo Dias falou sobre o irmão assassinado, César Benjamin leu uma mensagem enviada do Rio de Janeiro pela viúva de Lamarca, Maria Pavan, e seus filhos César e Cláudia.
Olderico Campos Barreto, irmão de Zequinha, sobrevivente do tiroteio e das torturas, falou das mutilações sofridas pelos irmãos mortos, de como seu velho pai foi dependurado de cabeça para baixo. Olderico lembrou Iara Iavelberg, companheira de amor e luta de Lamarca, morta em Salvador, pouco antes do sangrento desfecho no sertão. Lá estavam D. Maria Santa Bárbara e Luíz, mãe e irmão de Luíz Antônio Santa Bárbara.
A palavra das igrejas
Palavras do bispo dom Frei Luíz:
"Irmãos e irmãs, neste momento a Diocese de Barra abre solenemente a celebração "Vidas pela Vida". Quando idealizamos esta celebração tínhamos em mente três grandes motivos.
Em primeiro lugar, pedir perdão a Deus pela grande injustiça que cometemos tirando a vida de homens que lutavam pela justiça. O sangue de nossos heróis deve ser lavado, nosso primeiro grande motivo é penitencial.
O segundo grande motivo é de ação de graças. Queremos agradecer a Deus por nos ter dado a graça de conhecermos pessoas tão grandes, tão importantes, que nos deram um exemplo maravilhoso de terem tido a coragem de derramar seu sangue, doarem suas vidas, para a construção de um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais solidário.
O terceiro motivo que nos une é aprender com eles uma grande lição de vida. Os mártires são pedras vivas da construção da Igreja, da construção do mundo, são eles as pedras angulares do novo tempo. E somente no resgate do passado, no passar a limpo o passado, teremos condições de construir o futuro com mais consciência e espírito cidadão.
Palavras do pastor Djalma Torres
"A mim coube comentar a leitura da Bíblia, mas antes quero agradecer a honra e privilégio de estar presente a esta celebração, parabenizar a Diocese de Barra, na pessoa de seu bispo dom Frei Luíz, pela coragem e pelo desafio que nos apresenta, a todos nós, católicos e protestantes, para que nos juntemos em ato de clamor, numa convocação a todo o povo de Deus, para que neste país se estabeleça o império da justiça".
Palavras do pastor João Dias
"Estamos alegres, porque nos reunimos para celebrar hoje a vitória de Nosso Senhor Jesus Cristo, expressa na vida dos mártires desta terra, aqueles que morreram, que tombaram na luta em favor de dias melhores para o povo. O sangue dos mártires é a sementeira da História. Estes nossos irmãos que tombaram nesta terra seguiram o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que deu sua vida em favor de todos nós. Vamos todos seguir os exemplos de Jesus e dos mártires para prosseguirmos na luta pela libertação de todo o povo".
"Lamarca não morreu, Lamarca vive"
Terminada a celebração, em romaria, a multidão seguiu um camponês que, em penitência, carregou nos ombros a pedra em que Lamarca repousou a cabeça antes da morte. Com orações, cânticos, palmas e velas acesas, todos caminharam até o pé da ressequida baraúna, em cuja sombra Lamarca e Zequinha descansaram seus últimos momentos, depois seguiram em direção a uma enorme cruz, erguida no meio da caatinga, poucos metros adiante, no exato local onde Zequinha caiu varado de balas. E os militantes do MST repetiam: "Lamarca não morreu, Lamarca vive".
As palavras de Emiliano José
(À sombra da baraúna no lugar onde Lamarca tombou)
Esta celebração “Vidas pela Vida” teve para mim, pessoalmente, uma importância muito grande. Há quase 30 anos eu acompanho a história de Lamarca. Na época da ditadura militar, eu e Olderico Campos Barreto, estivemos presos juntos na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador.
Na prisão, eu ouvia fascinado os relatos de Olderico sobre a luta que se travou nesta região. Ao sair da prisão, continuei pesquisando e, em parceria com o jornalista Oldack Miranda, lancei em 1981 o livro “Lamarca, O Capitão da Guerrilha”, que já inspirou os filmes “Portas de Fogo”, do cineasta Edgard Navarro, e “Lamarca”, de Sérgio Rezende.
É com muita emoção que vejo o resgate da pessoa de Lamarca, Zequinha e seus companheiros. Lamarca aqui era nome maldito, fruto do trabalho de terror das forças militares e das elites locais. Aqui houve tempo que só se falava de Lamarca com medo, as pessoas tremiam.
Agora é diferente, graças à coragem de dom Frei Luíz, ao denodo de Adriano Martins, do Centro de Assessoria de Assuruã, às presenças dos pastores Djalma Torres e João Dias. Graças também ao trabalho dos agentes pastorais, dos religiosos, dos líderes comunitários locais, não vamos nos lembrar dos assassinos, dos terroristas militares, dos que aqui plantaram sementes de ódio e medo, mas vamos nos lembrar, sim, dos mártires, dos que plantaram sementes de esperança.
É bom lembrar que tudo aquilo que Lamarca dizia da região continua existindo. A fome, a dureza da seca, a migração, a inexistência da reforma agrária, a terra que não é repartida, então, quando lembrarmos de nossos mártires, devemos dizer que a luta continua".