10 de fevereiro de 2014

 

Emiliano José escreve sobre envolvimento de psicanalistas na tortura

 O psicanalista Amilcar Lobo serviu às sevícias do DOI-CODI contra presos políticos na ditadura militar. Dava até atestado de resistência à tortura. Cecília Coimbra escreveu sobre isso na obra “Guardiães da Ordem – uma viagem pela práticas psi no Brasil do “Milagre”. A Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) defendeu o psicanalista torturador, que chegou a fazer ameaças a Helena Viana que denunciou o envolvimento de profissionais na tortura. O Cremerj chega a cassar o direito de exercício da profissão, mas, o Conselho Federal de Medicina não confirma a decisão. Entidades de psicanálise cúmplices da ditadura militar. O que diria Freud? LEIA NA ÍNTEGRA>

Lobo, carneiro e psicanálise

                                                                                    Emiliano José*

Amilcar Lobo, em novembro de 1968, inscreve-se como candidato à formação analítica na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). No final de 1969, forma-se em Medicina, presta serviço militar no Exército e no início de 1970 passa a servir no DOI-CODI do Rio de Janeiro. E continua sua formação – queria mesmo ser analista. Até 1974, “dá assistência” aos presos políticos antes, durante e depois das sessões de torturas. Atende pelo nome de Dr. Carneiro – será que há alguma explicação psicanalítica para o codinome? 

            Antes das torturas, faz “prevenção”: se há alguma doença, se é cardíaco, vê até que ponto o preso pode suportar, qual o seu provável grau de resistência, quem sabe tente fazer um perfil psicológico. Durante, testa até que ponto a vítima pode aguentar o suplício. Depois, cuida dos farrapos saídos das torturas, prepara-os para nova rodada. Serve ao DOI-CODI,na Barão de Mesquita, onde tanta gente foi assassinada, e à “Casa da Morte”, em Petrópolis, de onde uma única presa saiu viva, Inês Etienne Romeu. A história macabra de Lobo é relativamente conhecida.

            Dia desses, ao acaso, peguei o livro de Cecília Coimbra – Guardiães da Ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”, da Oficina do Autor, 1995 –, e me surpreendi ao ler os relatos sobre o procedimento da entidade psicanalítica – a SPRJ. O caso de Lobo, no âmbito psicanalítico, explodiu primeiro na Argentina, na revista Questionamos número 2, coordenada pela psicanalista argentina Marie Langer, em 1973. A denúncia chegara através do jornal Voz Operária, do PCB.

            Graças à coragem da psicanalista Helena Besserman Viana, do Rio de Janeiro, outras denúncias são feitas na França, nos EUA, no Canadá e na Espanha. Chegam ao conhecimento do então presidente da International Psychoanalitical Association (IPA), fundada por Freud em 1910, Serge Lebovici. A SPRJ defende Lobo perante a IPA – “é uma calúnia”. E pede o testemunho do comandante da tortura do I Exército, general Sílvio Frota, que naturalmente defende o seu assistente. A IPA aceita a explicação da SPRJ. Entidades psicanalíticas claramente de braços dados com a ditadura e os torturadores. Quase inacreditável, mas verdadeiro.

            Os rumores dentro da entidade criam desconforto – o que diria Freud, hein? Em meados dos anos 70, Lobo se afasta voluntariamente da entidade. Numa conferência de Wilfred Bion, no Rio de Janeiro, Lobo aproxima-se de Helena Viana, e sussurra ao ouvido dela: “tome cuidado, você pode ser dar mal, algo pode lhe acontecer”. Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, psicanalistas conhecidos, são perseguidos e expulsos da SPRJ por lembrarem a denúncia da revista Questionamos.A posição da entidade era muito clara, portanto.

            Se a entidade psicanalítica evidencia sua cumplicidade com a ditadura e com a tortura, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ), nem que tardiamente, em 1988, cassa o direito de Lobo de exercer a profissão, cassação ratificada pelo Conselho Federal de Medicina. Leão Cabernite e Ernesto La Porta, orientadores de Lobo, seus ardorosos defensores (o que diria Freud, hein?), são cassados pelo CREMERJ e o Conselho Federal, lamentavelmente, não confirma a decisão.

            Os argumentos da SPRJ na defesa de Lobo são impressionantes. O orientador dele na última fase – é, Lobo poderia se tornar um psicanalista! –, Leão Cabernite, afirmou, sem rodeios, que a análise de seu analisando foi inviabilizada pelos “rumores” de que fosse torturador: “foi contaminada pela intromissão da realidade externa”. Afirmava nunca ter sido político, e que “a ideologia dele era a psicanálise”. As denúncias da Questionamos eram características de “órgãos estrangeiros, hostis à psicanálise”.

            Esse episódio evidencia o quanto a política (ou a realidade) invade todos os territórios. O quanto alcança a intimidade da psicanálise. O mal estar na cultura (ou na civilização) se modifica de acordo com as mutações da vida política. A psicanálise não está à parte do mundo. Nem o analista, nem o analisando. E não há muro: sempre há que se ter posição. Ainda bem que a história cobra, desnuda. E Freud explica. 

Publicado em 10/02/2014 em A Tarde, página Opinião.

            *jornalista e escritor

            emiljose@uol.com.br


 

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