28 de setembro de 2013
O som do preconceito ao redor
O
premiado longa-metragem “O som ao redor” do cineasta Kleber Mendonça Filho, que
aborda os conflitos sociais a partir de um quarteirão do Recife não me sai da
cabeça. A vinculação com o caso da jornalista Micheline Borges, do Rio Grande
do Norte, que viralizou no facebook uma pérola de racismo explícito (“Me perdoem
se for preconceito, mas, essas médicas cubanas tem uma cara de empregada
doméstica. Será que são médicas mesmo?”) sobre as médicas cubanas que chegaram
para o programa Mais médicos é recorrente em minha cabeça. O ambiente criado no
filme, apartamentos novos, pintados, com televisores de tela plana, pode ser de
qualquer lugar. O que muda é a divisão entre senhores e escravos.
Na Bahia,
Pernambuco, Rio Grande do Norte, Nordeste, Brasil inteiro, a cena das empregadas
domésticas e babás vestidas de uniforme é padrão. São escravas, herança do
sistema patriarcal e escravagista tão bem descrito em Casa Grande &
Sensala. Babás mestiças de bebês loiros são verdadeiras mucamas. Antes eram
escravas, hoje são exploradas pelo salário. A cultura escravagista é muito forte
no Recife, e também no Rio Grande do Norte, bem como no resto do Brasil. O
filme não chegou a abordar, mas a reação da classe média contra a lei passou a
garantir direitos trabalhistas para as empregadas domésticas. Nem precisava.
Médicas
brancas que vaiam colegas cubanas em aeroportos, jornalista que agride médicas
cubanas comparando-as com “aparência de empregadas domésticas”, casais ricos, pais
de bebês de olhos azuis, que freqüentam restaurantes com babás uniformizadas de
branco, são cenas comuns que ilustram nossa cultura escravagista, da qual não
conseguimos nos libertar. Claro que “O som ao redor” retrata também o conflito
de classe, a luta de classe do capitalismo urbanizado, assim como captura
sinais sutis de mudanças na postura das classes pobres em relação aos ricos.
Uma explicação, para o cineasta Kleber Mendonça Filho, é a quebra de paradigma
da era Lula, um presidente que promoveu distribuição de renda. “Hoje, ser pobre
não é uma vergonha”. De fato, no filme, nenhum trabalhador abaixa a cabeça para
o patrão.
“O som ao
redor” merece ser visto – é sucesso de bilheteria – até porque nos faz lembrar
de nossa cultura escravagista entranhada nas mentes e corações. E pode fazer
com que gente como a jornalista Micheline Borges (branca e loira) sinta
vergonha, muita vergonha.