24 de março de 2007
A escritora Simone e a juíza Sara
O jornalista Vitor Hugo Soares, Editor de Opinião do jornal A Tarde, de Salvador, escreveu um lindo artigo sobre a juíza Sara de Britto, a ex-militante combatente contra a ditadura que acaba de se tornar desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia. Segue na íntegra o artigo que copiei do blog Terra Magazine:
Juíza de direito e força
Em altar da minha estante de livros cultuo com toda devoção A Força das Coisas, terceira parte das memórias de Simone de Beauvoir, que fala de pessoas, livros, filmes e viagens, com muitas páginas sobre o Brasil e a visita à Bahia junto com Sartre.
Além de ser a autora uma das minhas paixões literárias e políticas na juventude e sempre, a obra é um presente ofertado por um casal de amigos especiais, Sara Silva e Pedro Milton de Brito, ambos de trajetória histórica na resistência política e na justiça da Bahia a partir da década de 60.
Ela, Sara, juíza de direito, ex-combatente nas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro nos movimentos sociais, foi eleita membro permanente do Tribunal de Justiça da Bahia - tantas vezes citado como um dos mais conservadores do País.
Ele, Pedro, duas vezes presidente da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil e de ação invulgar no Conselho Nacional da OAB, ganhador post-mortem do I Prêmio dos Direitos Humanos da OAB-BA.
A eleição por mérito de Sara para o TJB assume significado duplo de reconhecimento e de justiça. Sob a ótica política, assinala um avanço expressivo do processo de transformação da vida pública e dos poderes no País e no Estado.
A mais nova desembargadora da Bahia nasceu em família modesta do empobrecido e relegado município de Itapicuru. Em estudo recente da Organização das Nações Unidas (ONU), a cidade aparece como a de mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. No império, Itapicuru foi domínio de poderosos barões, senhores da terra e de seus habitantes. Mais tarde, serventia de influentes políticos republicanos no Estado.
Em 64, mesmo ano em que foram rompidas as barreiras do Estado democrático pelo regime discricionário que então se implantava no Brasil, Sara era aprovada no vestibular da ilustre e agitada Faculdade de Direito da UFBA.
Principal líder feminina do movimento estudantil, virou referência por seu comportamento destemido e, às vezes, temerário. Como não notar aquela figura de mulher nordestina equilibrando-se - como uma Simone de Beauvoir nas barricadas de Paris - sobre um pára-choque de ônibus, em frente ao Palácio do Governo, no centro de Salvador?
Dali ela empolgava "a massa" nas passeata baianas, como registraram os jornais na época. Presa inúmeras vezes, Sara teve a sua matrícula cassada - juntamente com dezenas de outros estudantes da UFBA - e foi expulsa da Faculdade de Direito, no último ano do curso, por força do Ato Institucional nº5.
Conseguiu concluir o bacharelado na Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, onde o baiano Elquisson Soares era presidente do Diretório Acadêmico, mas não escapou das perseguições.
Presa, foi trazida para Salvador e encarcerada na antiga Casa de Detenção do Largo de Santo Antônio, onde ficou por quase três anos. Foi solta por força de habeas corpus impetrado por Pedro Milton, também ex-preso político. Impedido de tomar posse como procurador da República depois de aprovado em concurso entre os primeiros lugares, ele começava a exercer a sua verdadeira vocação, a de advogado.
A força das coisas de que fala Simone em seu livro de memórias começava a agir. Pedro e Sara se casaram e mantiveram a porta da residência do casal aberta para as visitas e encontros indispensáveis com amigos e companheiros de profissão em busca do saber, do afeto e do incrível bom humor que Pedro Milton de Brito compartilhava generosamente.
Lugar de refúgio também dos perseguidos políticos e da gente de todas as classes e profissões, à procura de justiça: dos ex-governadores Waldir Pires, atual ministro da Defesa, e Lomanto Júnior, ao ex-prefeito Mário Kertész; dos jornalistas João Carlos Teixeira Gomes (Joca) e Joaci Goes; dos ex-deputados Chico Pinto, Elquisson Soares e Emiliano José ao atual bispo de Feira de Santana, Itamar Vian, e até a líder indígena da Bolívia Domitila Barrios.
Na despedida prematura de Pedro, que não viu a chegada do século XXI, em que apostava esperanças de otimista imbatível, Waldir Pires afirmou à beira do caixão: "Se foi um representante da Bahia digna". O jornalista Bob Fernandes, em texto comovido, completava dias depois na revista Carta Capital: "Não há quem duvide, mesmo os representantes indignos".
Com a chegada da desembargadora Sara Silva de Brito ao Pleno do TJB - a posse está marcada para hoje -, um sinal cristalino de que a Bahia de que falam o ministro e o jornalista sobrevive.
*Vitor Hugo Soares é jornalista, editor de Opinião de A Tarde. Escreve para o Blog do Noblat. 23 de março de 2007.
Juíza de direito e força
Em altar da minha estante de livros cultuo com toda devoção A Força das Coisas, terceira parte das memórias de Simone de Beauvoir, que fala de pessoas, livros, filmes e viagens, com muitas páginas sobre o Brasil e a visita à Bahia junto com Sartre.
Além de ser a autora uma das minhas paixões literárias e políticas na juventude e sempre, a obra é um presente ofertado por um casal de amigos especiais, Sara Silva e Pedro Milton de Brito, ambos de trajetória histórica na resistência política e na justiça da Bahia a partir da década de 60.
Ela, Sara, juíza de direito, ex-combatente nas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro nos movimentos sociais, foi eleita membro permanente do Tribunal de Justiça da Bahia - tantas vezes citado como um dos mais conservadores do País.
Ele, Pedro, duas vezes presidente da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil e de ação invulgar no Conselho Nacional da OAB, ganhador post-mortem do I Prêmio dos Direitos Humanos da OAB-BA.
A eleição por mérito de Sara para o TJB assume significado duplo de reconhecimento e de justiça. Sob a ótica política, assinala um avanço expressivo do processo de transformação da vida pública e dos poderes no País e no Estado.
A mais nova desembargadora da Bahia nasceu em família modesta do empobrecido e relegado município de Itapicuru. Em estudo recente da Organização das Nações Unidas (ONU), a cidade aparece como a de mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. No império, Itapicuru foi domínio de poderosos barões, senhores da terra e de seus habitantes. Mais tarde, serventia de influentes políticos republicanos no Estado.
Em 64, mesmo ano em que foram rompidas as barreiras do Estado democrático pelo regime discricionário que então se implantava no Brasil, Sara era aprovada no vestibular da ilustre e agitada Faculdade de Direito da UFBA.
Principal líder feminina do movimento estudantil, virou referência por seu comportamento destemido e, às vezes, temerário. Como não notar aquela figura de mulher nordestina equilibrando-se - como uma Simone de Beauvoir nas barricadas de Paris - sobre um pára-choque de ônibus, em frente ao Palácio do Governo, no centro de Salvador?
Dali ela empolgava "a massa" nas passeata baianas, como registraram os jornais na época. Presa inúmeras vezes, Sara teve a sua matrícula cassada - juntamente com dezenas de outros estudantes da UFBA - e foi expulsa da Faculdade de Direito, no último ano do curso, por força do Ato Institucional nº5.
Conseguiu concluir o bacharelado na Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, onde o baiano Elquisson Soares era presidente do Diretório Acadêmico, mas não escapou das perseguições.
Presa, foi trazida para Salvador e encarcerada na antiga Casa de Detenção do Largo de Santo Antônio, onde ficou por quase três anos. Foi solta por força de habeas corpus impetrado por Pedro Milton, também ex-preso político. Impedido de tomar posse como procurador da República depois de aprovado em concurso entre os primeiros lugares, ele começava a exercer a sua verdadeira vocação, a de advogado.
A força das coisas de que fala Simone em seu livro de memórias começava a agir. Pedro e Sara se casaram e mantiveram a porta da residência do casal aberta para as visitas e encontros indispensáveis com amigos e companheiros de profissão em busca do saber, do afeto e do incrível bom humor que Pedro Milton de Brito compartilhava generosamente.
Lugar de refúgio também dos perseguidos políticos e da gente de todas as classes e profissões, à procura de justiça: dos ex-governadores Waldir Pires, atual ministro da Defesa, e Lomanto Júnior, ao ex-prefeito Mário Kertész; dos jornalistas João Carlos Teixeira Gomes (Joca) e Joaci Goes; dos ex-deputados Chico Pinto, Elquisson Soares e Emiliano José ao atual bispo de Feira de Santana, Itamar Vian, e até a líder indígena da Bolívia Domitila Barrios.
Na despedida prematura de Pedro, que não viu a chegada do século XXI, em que apostava esperanças de otimista imbatível, Waldir Pires afirmou à beira do caixão: "Se foi um representante da Bahia digna". O jornalista Bob Fernandes, em texto comovido, completava dias depois na revista Carta Capital: "Não há quem duvide, mesmo os representantes indignos".
Com a chegada da desembargadora Sara Silva de Brito ao Pleno do TJB - a posse está marcada para hoje -, um sinal cristalino de que a Bahia de que falam o ministro e o jornalista sobrevive.
*Vitor Hugo Soares é jornalista, editor de Opinião de A Tarde. Escreve para o Blog do Noblat. 23 de março de 2007.