8 de junho de 2013

 

Memória: Gilberto Gil contra a ditadura militar


Parte inferior do formulário

 Revista Música Brasileira - Em 1973 a ditadura praticava ações criminosas como sequestro, tortura e assassinato de quem ousasse se opor. Foi o que aconteceu com o Minhoca, jovem estudante de Geologia da USP, que desapareceu no dia 17 de março. Foi visto por outros presos nas dependências do Dops pela última vez, destruído pelos golpes e choques elétricos. Ainda teve tempo de gritar “meu nome é Alexandre Vanucchi Leme, estudo na USP, e só disse o meu nome”.
Não era mais possível suportar tanta violência. Depois que foi anunciado o “suicídio” de Minhoca pelos órgãos oficiais, uma missa foi organizada na Catedral da Sé, com a participação do cardeal Paulo Evaristo Arns. Caravanas de estudantes se dirigiram para lá na noite de 30 de março, mas a repressão policial também. Com a praça cercada, mais de 50 estudantes foram detidos. Durante a missa, o compositor Sérgio Ricardo cantou, de forma emocionada, a canção Calabouço, cuja letra se refere ao assassinato do secundarista Edson Luís, no Rio de Janeiro, em 1968.

Era preciso fazer mais. Então surgiu a ideia de convidar Gilberto Gil para um show quase clandestino. Por que Gil?  Chegado a pouco do exílio londrino, Gil fazia shows pelo Brasil, e havia lançado no ano anterior, o disco Expresso 2222. Naquela semana estava em São Paulo para uma mostra dos artistas da Phonogram e Gil havia sido vítima de mais uma violência do regime militar. Os censores cortaram o áudio dos microfones no momento em que ia apresentar uma canção feita em parceria com Chico Burarque: Cálice.
Uma comissão de estudantes convidou Gil para um show de protesto. Ele topou. No sábado, 26 de maio, Gil chegou ao auditório da Poli e disse que ficaria 30 minutos. Cantou, dançou, falou, debateu por mais de três horas. Tudo foi gravado clandestinamente pelo estudante Guido.

Essa história está contada no livro Cale-se (Editora Girafa 2003), escrito pelo jornalista Caio Túlio Costa.
Veja o show pode ser baixado aqui:

Fonte: Revista Música Brasileira

7 de junho de 2013

 

Família do advogado Marcelo Duarte presta esclarecimento importante


Deu na coluna Tempo Presente, assinada pelo jornalista Levi Vasconcelos, do jornal A Tarde (07/06/2013):
“Marcelo Duarte, o advogado do pastor Átila Brandão na pendenga com o jornalista Emiliano José, não é Marcelo Duarte, pai de Nestor Duarte, secretário do Sistema Prisional. É um homônimo. A família de Marcelo, o tradicional, fez questão da ressalva”.

Ah! Que alívio. Muita gente estava confundindo com o famoso advogado, homem íntegro, de história política invejável, deputado estadual pelo MDB, cassado pela ditadura militar através do AI-5, vice-prefeito de Salvador, progressista, de grande sabedoria, respeitado professor de gerações de advogados, diretor e vice-diretor da Faculdade de Direito da UFBA, ex-secretário da Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia, ex-líder estudantil, presidente do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, diretor do jornal Unidade, integrantes da União dos Estudantes da Bahia (UEB) e da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Não dá para confundir. Marcelo Duarte, o nosso, é filho de Nestor Duarte, grande jurista, escritor e figura impoluta da história política do Brasil e da Bahia, e pai de Nestor Duarte e Márcio Duarte, ambos respeitáveis políticos baianos e de Lucília. Claro, não podia ser este.

A família Duarte tem um pedigree intocável. O velho Nestor Duarte foi um dos fundadores do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e um dos grandes opositores, ao lado de Ulisses Guimarães, da ditadura militar. Nestorzinho Duarte, advogado, filho de Marcelo Duarte, foi  deputado estadual de vários mandatos, deputado federal constituinte e vários mandatos de deputado federal.
Ah! Que alívio.

Por que será que a família Duarte fez tal esclarecimento público?

5 de junho de 2013

 

Não esperem revoluções provocadas pelo facebook

O sociólogo Manuel Castells entende que novos movimentos, nascidos da internet, estão recriando a democracia, entretanto, ressalva que não basta um manifesto no facebook para mobilizar milhares de pessoas na vida real. O alcance real depende das condições culturais e da vontade de quem lê os manifestos. Há muitos exemplos de protestos, organizados por milhares de pessoas no facebook, que se transformam em menos de uma centena nas ruas. Assim, a internet é uma condição necessária, mas não suficiente para que existam movimentos sociais. O essencial para a mudança social é que a mudança já tenha ocorrido na cabeça das pessoas.

Manuel Castells vem ao Brasil no dia 10 de junho, em Porto Alegre, e no dia 11 em São Paulo para o Ciclo de Conferências Fronteiras do Pensamento. Ele sempre faz referência ao conceito de jornalismo em rede. E define rede como o lugar onde se produz e distribui informação, o que não diminui o papel do jornalista profissional. “Ao contrário, alguém tem que interpretar toda essa massa de informação em tempo real, e isso só com um profissional preparado, com independência e critério”.
Professor da Universidade Aberta da Catalunha e da Universidade do Sul da Califórnia, professor emérito da Universidade de Berkeley, ele assina livros importantes como “O Poder da comunicação”, muito lido nas universidades brasileiras. Diante do desprestígio crescente dos políticos, partidos e parlamentos e de uma imprensa mediada por empresários com suas alianças e interesses próprios, ele aponta dois fatores que podem garantir a liberdade de comunicação: o profissionalismo dos jornalistas e a rede.

AMEAÇAS À DEMOCRACIA – Vejo uma conexão entre as posições do sociólogo Manuel Castells e o discurso de um importante filósofo canadense, Charles Taylor. Professor de filosofia e ciências políticas na Universidade McGil, no Canadá, Taylor comenta as ameaças que pairam sobre as democracias liberais. No caso da Europa, a crise econômica e a incapacidade da sociedade européia enxergar que os imigrantes são necessários. Quem vai, afinal, pagar as aposentadorias da população que envelheceu?  Taylor é autor da obra “Ética da autenticidade” (Editora É Realizações) na qual defende o valor das ideias para mudar a sociedade e insiste que é impossível vivermos sem política. “Atualmente, o desafio da democracia liberal é continuar sendo democracia liberal”.
Será possível que não precisemos mais de democracia? Segundo Taylor, não podemos viver sem ela, porque nossas vidas são dominadas pelo poder político. A idéia de que seria possível ignorar simplesmente a política é uma ilusão. Pode haver revoluções no facebook? Ele responde que revoluções no facebook podem ter um efeito imediato, e podem ser de fato importantes, mas não são algo que possa servir de base para mudanças, porque elas não produzem “liga social”. Liga social acontece quando na sociedade surge um forte sentimento de solidariedade, um senso forte de identidade nacional, de identidade comum.  Não há nenhuma razão para que o mito nacional seja capturado pela direita. “Para se ter capacidade de resistência é preciso ter organização política”.

Voltando a Castells, a rede da internet é incontrolável, mesmo por ditaduras. Na China, os hackers fazem do controle do Estado um “tigre de papel”, como diria Mao Tse Tung, o fundador da República chinesa. O controle da internet se faz com robôs que utilizam palavras-chaves, então, basta que eles não usem tais palavras. Não há como controlar milhões de blogs individuais, que são onde se gera o debate. Seria um grave erro cobrar por informação na rede. Qualquer tentativa de utilizar as pessoas levará a uma competição entre centenas de outras. Os leitores simplesmente migram para outros canais informativos e de debate. Quem não tem boa perspectiva são os meios de comunicação tradicionais, a menos que se reconvertam ao “jornalismo em rede”.

4 de junho de 2013

 

 

Artigo Teoria e Debate - 1994: Real silêncio do Brasil profundo


* Emiliano José

Os jornalistas que acompanharam a caravana foram surpreendidos pela realidade. Foram cobrir uma campanha eleitoral, e depararam com uma espécie de nova pedagogia política. Mais falava o povo que os líderes

Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti
que tinha travado conhecimento com um engenhoso
aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada
de tablado de mágica e espelho de prestidigitador,
provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos,
glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo,
uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões.
Era a imprensa, a Onipotente Imprensa,
o quarto poder fora da Constituição!

Não se pretende aqui contar a história da Caravana da Cidadania. Mas, para chegar à eleição presidencial de 1994, quando se abrirão as portas, verdadeiramente, para a experiência neoliberal no Brasil, com FHC à frente, não se pode deixar de fazer uma breve referência sobre essa epopeia, espécie de Coluna Prestes do fim do século 20, que envolveu mais de uma centena de encontros e atos públicos, em 68 cidades, sete estados, e percorreu mais de 4 mil quilômetros, entre 23 de abril e 12 de maio de 1993, sem direito a folga.

E isso apenas para me referir à primeira delas. Na verdade, foram sete caravanas a mergulhar no Brasil profundo, que terminou precisamente no dia 12 de julho de 1994, o que no total significará passar por 281 cidades de um Brasil quase desconhecido.

Na inaugural se refaz a trajetória migrante de Luiz Inácio Lula da Silva, de Garanhuns, em Pernambuco, a Guarujá, São Paulo. O ineditismo da Caravana da Cidadania, para além de quaisquer outras considerações, foi conseguir dar ao povo explorado, oprimido, o direito de falar, ser protagonista, e não apenas ouvinte passivo, figurante perdido na multidão, como diz Ricardo Kotscho.

Não cabe falar das emoções, do que significou aquele mergulho no Brasil profundo, como aquela caminhada ensinou a Lula e ao PT o quanto era necessário caminhar para que o Brasil pudesse um dia ser um país justo com seus filhos, especialmente com aqueles filhos que viviam à margem. Isso já está registrado em artigos, ensaios, livros. Leonardo Boff termina seu texto sobre a sétima caravana lembrando-se do poeta Pablo Neruda:
“É memorável, e ao mesmo tempo dilacerador, ter encarnado para muitos, por um lapso de tempo, a esperança de todo um povo”. Lula, o andarilho, encarnava aquela esperança, e tem sido fiel a ela.

O que se quer, para além da tentação de analisar mais detidamente o sentido profundo daquela iniciativa, é mostrar que desde lá, desde a primeira caravana, a mídia lançou-se ao combate contra Lula, com a certeza de que ele fazia aquela jornada com a intenção de fortalecer sua candidatura à Presidência da República, ou como se fosse tão somente isso. Lula, durante a caravana, chegou a mandar tirar faixas que o lançavam como candidato. Candidatura, aliás, que era mais ou menos óbvia, direito que ele adquirira por sua luta e história.

Os jornalistas que a acompanharam foram surpreendidos pela realidade, e isso quem conta também é Ricardo Kotscho. Foram cobrir uma campanha eleitoral, e depararam com uma espécie de nova pedagogia política. Mais falava o povo que os líderes. Mais falavam os trabalhadores e trabalhadoras do que Lula. Essa era uma diretriz do próprio Lula, que queria muito mais ouvir do que falar. Era uma maneira de redescobrir o Brasil e seu povo, conhecer a vida dos mais pobres, um vestibular aprimorado de Brasil.
No primeiro momento, os repórteres mandavam as matérias que seus olhos emocionados viram. Redescobriam-se repórteres, fora dos gabinetes refrigerados, cobrindo verdadeiramente um acontecimento, sem fontes ao telefone. Gostaram do que viram, e da possibilidade de voltar a fazer jornalismo. Era um exercício novo.

Num segundo momento, admoestados por suas vigilantes chefias, exigidos por elas, passaram a tentar encontrar leads desfavoráveis ou a distorcer os acontecimentos. Ou, em outras ocasiões, os jornalistas elaboravam uma matéria e saía outra, devidamente copidescada pelos editores, prática antes inexistente nas redações, ao menos nos muitos anos em que exerci cotidianamente a profissão. Hoje, vigora um paradigma baseado no teste de hipóteses de Ali Kamel, que não se incomoda com os fatos, mas em adequar os fatos às hipóteses previamente pautadas, que devem ser seguidas, custe o que custar.

A orientação era clara: a caravana tinha de ser criticada porque senão terminaria fortalecendo Lula mais do que as pesquisas indicavam, e naquele momento ele liderava qualquer sondagem. O Estadão e a Folha de S.Paulo, por exemplo, disputavam entre si para ver quem era mais crítico e menos petista. Ou como combatiam melhor o operário. A revista Veja, sempre ela, chegou a fazer a matéria denominada “O marketing da fome”, publicada no dia 12 de maio de 1993, numa distorção completa do que era a caravana.
O texto de Veja converte a caravana num “espetáculo demagógico” encenado por um “líder messiânico”, onde até o fato de Lula e comitiva almoçarem era criticado, além de fazer a observação crítica de o metalúrgico deliciar-se com um charuto importado – Cohiba. A matéria é um primor de lugares-comuns antipetistas, eivada de preconceitos e argumentos que perseguirão Lula de lá até os dias de hoje. Besteiras de uma direita que nunca aceitou a possibilidade de o retirante ousar ser presidente da República. Começava ali a Operação 1994, destinada a interditá-lo, a evitar sua chegada à Presidência.

Kotscho diz, com propriedade, que aquela viagem evidenciou que a imprensa não estava mais preparada para fazer reportagem, para entrar em contato com a realidade. Desaprendera de reportar a realidade. Acrescente-se, no entanto, que, para além dessa característica, verdadeira, há o fato de que a imprensa brasileira naquele momento, e nos dias de hoje, tem sempre um ponto de partida, uma pauta pronta, como já dito, o que significa que não importa tanto a realidade, mas os objetivos que se quer atingir. E, naquela quadra histórica, o inimigo número um da mídia era Lula, que para ela, a mídia das poucas famílias, não podia e não devia chegar ao Palácio do Planalto.

Então, era ali, no nascedouro daquela nova tentativa que adotava uma forma original de chegar ao povo, que o combate devia começar, e começou. Para não parar mais. A velha mídia, embora de forma diversa, será novamente um ator importante para derrotar Lula, desde a Caravana da Cidadania. O partido político nunca deve descansar, e este, o partido das poucas famílias que controlam a mídia hegemônica no Brasil, será sempre um defensor de privilégios, contra reformas progressistas e contra os pobres.

Bernardo Kucinski ressalta que as caravanas constituíram-se numa espécie de metáfora das travessias de ambientes hostis. A mídia seguiu o que ele chama de princípio da exclusão, salvo para desqualificar Lula e as caravanas ou para amplificar incidentes técnicos de modo a transmitir ideia de desorganização. E assinala: a primeira grande e informativa reportagem sobre as caravanas será publicada pela revista Newsweek. Um vexame. Na definição precisa de Kucinski, o que se fez, nas caravanas, foi jornalismo de espionagem, a serviço da tentativa permanente de erodir a imagem de Lula, nunca um jornalismo de informação, como sempre autoproclamado, falsamente.

Deixemos a mídia por enquanto. Nos primeiros ensaios voltados para as eleições de 1994, o campo conservador estava perdido: não tinha candidato forte, não tinha unidade, e via o fortalecimento do PT e de seu candidato. Enfrentava a hiperinflação e a lembrança permanente de sucessivos pacotes anti-inflacionários malsucedidos. Lula já aparecia com 30% na preferência dos eleitores antes que a campanha se iniciasse, o que era um ótimo patamar. Em maio de 1994, chegará a 42%, contra 16% de FHC. Parecia que o cenário era positivo para Lula, e naquele momento era. Só que no meio do caminho tinha uma pedra...

O primeiro movimento conservador foi do próprio Congresso Nacional, em dois episódios. Como Lula liderava com folga todas as pesquisas, como a possibilidade de sua vitória assustava – e era uma possibilidade real na análise dos adversários –, o campo conservador, na reforma constitucional, que foi um fracasso se consideradas suas pretensões iniciais, aprovou a redução do mandato presidencial de cinco para quatro anos. Era uma medida preventiva diante de uma eventual vitória do PT.

Quem me lembrou disso foi o deputado José Genoino, que desde lá exercia mandato pelo PT. O outro episódio, metódico, cirúrgico, visando às eleições, foi produzir uma legislação eleitoral que interditasse a publicidade das ações políticas do PT, essencialmente a divulgação das caravanas, sob a rubrica de exclusão de “cenas externas” no horário eleitoral. Sumiam especialmente as cenas tocantes das caravanas, os contatos mais profundos com o povo brasileiro desenvolvidos pelo PT.

Essa proibição, além de quaisquer outras observações, implicará, como de fato implicou, um horário eleitoral frio, sem nenhum entusiasmo. Isso antecipará e deslocará a campanha para a cobertura entusiasmada, celebrativa, das ações do governo por parte da mídia hegemônica, e particularmente para a parafernália espetacular da nova moeda, o real, sobre o que falaremos mais à frente. Implicará uma operação de valorização do discurso racional contra a emoção das ruas.

Silenciar as ruas, escondê-las, foi um claro propósito da nova legislação, aprovada em setembro de 1993. Valoriza-se o jornalismo, com toda a sua pletora de possibilidades e com sua clara opção política a favor de qualquer candidato anti-Lula, e minimiza-se o poder do horário eleitoral gratuito. A rigor, utilizando-se de técnicas do jornalismo, simulando cobertura, a mídia hegemônica participa decisivamente da campanha de FHC.

Para complementar, e obviamente interditando a ação política do PT, a nova legislação proíbe a chamada “boca de urna”. O campo conservador sabia que o PT e seus aliados eram os que dispunham de militância aguerrida capaz de atuar no dia das eleições, e criminalizaram essa atividade, criminalização que perdura até os dias de hoje, transformando o espetáculo eleitoral num simulacro, sem vitalidade alguma, sem nenhuma agitação, como já dito. Legaliza as doações de empresas e ressuscita o “voto de cabresto” ao permitir o uso de normógrafos, ou seja, o voto marcado para votação.
Uma excrescência em tudo por tudo, voltada para derrotar Lula, garantir a vitória dos conservadores, que ainda não tinham candidato. A salvação acaba surgindo com o Plano Real. A nova moeda entra em campo, autêntico fetiche, a moeda e sua natureza fantasmagórica, bruxuleante, transformada num quase-ator, com vida e simbolismo próprios, construídos conscientemente, invadindo corações e mentes, formulando um imaginário que a transformava na salvação do país.

O Plano Real, e vamos falar disso muito rapidamente na esteira do que diz José Luís Fiori, a despeito de sua originalidade operacional, integra inegavelmente a grande família dos planos de estabilização nascido no ventre do chamado Consenso de Washington, voltado à estabilização das economias periféricas. Fiori dirá que o Plano Real não foi concebido para eleger FHC. Este é que foi concebido, no plano político, para viabilizar no Brasil a coalizão conservadora de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI e condição política ao que faltava ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial no caso brasileiro.

Surgia o príncipe neoliberal, reclamado desde o início dos anos 1990, antevisto em Collor, rapidamente naufragado. Agora, se viabilizada a eleição de FHC, como foi, o neoliberalismo encontrava seu ator mais perfeito. Com FHC, os dominantes conseguiram forjar um bloco histórico conservador poderoso contra Lula, unindo forças econômicas, o poder da mídia e parcelas importantes do poder político, agregando forças significativas à direita.

Claro que o real, a fantástica nova moeda, que parecia encarnar os sonhos e as esperanças do povo brasileiro, construída assim numa gigantesca operação de propaganda, fora concebido para enfrentar a candidatura de Lula, mas, como diz Jorge Almeida, o Plano Real, sem um autor, sem o pai do plano, sem um pai que tivesse credibilidade, não alcançaria a respeitabilidade, a confiança da população brasileira.

A mídia hegemônica, integrante sempre de um projeto político conservador para o Brasil, entra no jogo mais e mais. Antes mesmo que surja FHC como alternativa, tenta incensar Jarbas Passarinho, toma iniciativas destinadas a demonizar o PT, independentemente de possuir provas – tenta vincular o partido a sequestros, acusa-o de receber dinheiro do Sindicato dos Rodoviários, tudo calunioso, mas isso nunca importou à mídia hegemônica.
Está na luta política. E a desenvolve sem quaisquer escrúpulos, usa os métodos mais sujos para atingir seu objetivo, no caso impedir a vitória de Lula a qualquer custo, para além de veracidades, verdades, observância dos fatos, como prescrevem as cuidadosas cartilhas que elabora para presumivelmente orientar suas redações. Nunca as respeitou.

O PT aparece fazendo um acordo com Sarney para evitar a CPI da CUT em troca de Roseana Sarney não ser convocada para depor na CPI do Orçamento. A velha mídia não recuou nem diante dos desmentidos tanto do PT quanto de Sarney. O assassinato de Oswaldo Cruz Júnior, presidente do Sindicato dos Rodoviários de São Paulo, deu outro mote para acusações absolutamente sem provas, e contra todas as evidências em contrário, visando atingir o PT.

Com a desincompatibilização de FHC, em 2 de abril de 1994, a mídia eleva ainda mais o tom. A Folha de S.Paulo chega a produzir uma fraude, utilizando-se de uma entrevista antiga de Lula à revista Playboy em que presumivelmente teria dito que admirava Hitler e Khomeini, quando explicitamente, na entrevista, declarara que “não, não admirava Hitler”.

Como diz Kucinski, trata-se de manipulação grosseira e distorção consciente, e nunca passível de uma autorretratação ou autocrítica ou um nós erramos. Investe contra Lula por ser, vejam só, “político profissional”. A acusação é da Folha de S.Paulo, na edição de 1º de maio de 1994, matéria de página inteira. Aqui é a exploração do preconceito contra os políticos, combate permanente de uma mídia que não tem votos e se acredita representante do povo, e, também, como acréscimo, e mais importante para ela, o preconceito contra o operário que, ousado, tenta invadir seara interditada aos que vêm de baixo, sobretudo um operário retirante nordestino, pobretão que não tem o direito de passar tanto tempo fora da fábrica e , sobretudo, fazendo política.

Devia, como parte da senzala, permanecer em seu lugar, e não tentar invadir área reservada às elites, como sempre ocorrera em nossa história. Aquela exceção não podia prosperar. Deveria voltar a vestir seu macacão e manusear novamente o torno. Até podia brigar pelos interesses sindicais dos trabalhadores, mas pretender fazer política, e ainda por cima chegar à Presidência da República, assim é demais também. Que se colocasse no seu lugar. É o pensamento da casa-grande, sem tirar nem pôr.

A matéria é um primor de manipulação, de distorção consciente. Aponta um crescimento do patrimônio de Lula tomando como base a eleição anterior, embora tenha de reconhecer, por evidência, ser um patrimônio pequeno – na verdade o patrimônio de Lula permaneceu inalterado salvo por uma herança, pequena, recebida por sua mulher, e à quitação de prestações da casa própria. Será que olharam para a evolução patrimonial de FHC? Ou aplicaram dois pesos e duas medidas?

O conservadorismo e o aproveitamento eleitoral evidente, tentando favorecer o candidato do partido-mídia, levam a que se acuse Lula de defender o casamento entre homossexuais e de ser a favor do aborto, de usar o carro de som de um sindicato, de vincular o Movimento dos Sem Terra (MST) ao PT, transformando-o no braço armado do partido, de acusar Lula de pregar o desrespeito à lei. Enquanto isso, FHC passa ao largo, olímpico, um puro entre os impuros, o príncipe contra o sapo barbudo, este um qualificativo posto por Brizola e largamente utilizado pela mídia. Para esta, não era de bom-tom, era pouco elegante atacar FHC, que devia sempre aparecer como um homem acima de qualquer suspeita. Lula, ao contrário, devia ser retratado, sempre, como alguém sob permanente suspeita, até porque vindo de baixo, até porque operário.

O episódio José Paulo Bisol, candidato a vice na chapa de Lula que assinara um pedido de verbas para uma ponte no mesmo município em que tinha uma fazenda, foi explorado no limite, e teve influência na queda de Lula na preferência dos brasileiros – de 38% para 32%. Isso ocorre simultaneamente aos desdobramentos do Plano Real, lançado em 1º de julho, com a queda da taxa de inflação. Viver com preços estáveis não era pouco para a população. Tudo agora apontava para uma situação favorável ao pai do plano. A moeda nova, recém-nascida sob o foguetório midiático, alavancava FHC, que tendia a crescer. Lula, a cair. E a mídia continuaria a contribuir para isso, criando o cenário favorável ao novo príncipe neoliberal.

Os telejornais, amplas reportagens na área impressa, tudo convergia para o espetáculo de celebração do real, antes que qualquer efeito prático ocorresse. O Jornal Nacional, da Rede Globo, exalava um nada surpreendente otimismo, entrando na campanha pró-FHC de cabeça.

Márcia Vidal Nunes desmascara a simulação de neutralidade da Folha de S.Paulo, que constrói a candidatura de Fernando Henrique como aquele que encarna o Plano Real e como a única capaz de dar continuidade ao suposto estado de bem-estar trazido pela sua implantação e constrói a ideia de Lula como inimigo do povo por ser contra o Plano Real – e portanto contra as aspirações do povo, “cientificamente” traduzidas pelas pesquisas do DataFolha e de outros institutos de opinião sobre as expectativas predominantes de continuidade do real.

A mídia avalizou por antecipação o real, garantiu discursivamente seu sucesso por antecedência, o plano não precisou para isso sequer do teste da realidade, sumariamente descartado pela nossa mídia hegemônica. Albino Rubim arrisca-se a dizer que o real foi antes de tudo uma construção midiática, sem o que não existiria publicamente e, por isso mesmo, politicamente.

Essa mídia, em relação a FHC, não lhe poupou espaço, não lhe sonegou tempo, e foi complacente com seu candidato, pródiga em simpatia e paciência, como sempre acontece com aqueles com os quais se alinha politicamente. O real ocupou os lugares publicitários, penetrou os campos de futebol no Brasil que ganhou a Copa, entrou nas tramas das telenovelas, em programas de humor – viroticamente contaminou tudo, e jogou o pai do plano para as alturas, como acentua Rubim.

Grandes bancos e empresas estatais lançaram uma campanha de cerca de R$ 22 milhões para alavancar o real, contratando as cinco melhores agências de publicidade do país. Era um cenário onde tudo valia para garantir a Presidência a FHC e interditar Lula. Um espetáculo milionário de luta pela hegemonia, de luta político-cultural para a conquista de corações e mentes. Não havia o contraditório no amplo mundo da mídia, evidentemente associada aos interesses das classes dominantes, às quais pertence, por óbvio.

O cenário, se olhado para o mundo exclusivo da mídia hegemônica, para a cobertura feita, era todo desenhado, construído, visando a uma candidatura, a de FHC. E se a cobertura jornalística aparece sempre como uma verdade, infensa aparentemente ao mundo da publicidade estrito senso, então tudo ganhava ares de veracidade, por mais que se saiba, ou que alguns saibam, tratar-se de publicidade travestida de jornalismo, como de fato o foi. Jornalismo de campanha, como chamo.

No decorrer do programa eleitoral no qual, como já se disse, as ruas não contaram, houve um claro casamento, não ocasional: o de FHC anunciava o sucesso do real, a mídia reverberava, insistia na cobertura de celebração do seu sucesso. Uma operação política metodicamente levada a cabo, sem jeito de esconder, e por mais que se tentasse, como no caso da Folha de S.Paulo, o rabo ficava de fora.

O jornal atuou de forma claramente associada aos interesses de FHC enquanto o programa eleitoral esteve no ar. Delineava as diretrizes políticas da campanha através da capitalização resultante de fatos políticos reelaborados como fatos jornalísticos, e sempre no sentido de que essa reelaboração pudesse ter uma repercussão favorável à candidatura oficial. Não era bem jornalismo no sentido corrente, mas uma claríssima atuação política a favor do príncipe neoliberal, travestida sempre de atuação jornalística. O que foi uma prática do conjunto da mídia hegemônica.


FHC venceu as eleições no primeiro turno, com 54%. Lula teve 27% dos votos. Para isso, contou com a participação decisiva, fundamental, da mídia hegemônica. Evidente que o resultado não pode ser atribuído exclusivamente a ela. A coligação vitoriosa conformou um bloco histórico capaz de viabilizá-la, e derrotar a alternativa Lula. Mas é inegável também que sem a participação engajada da mídia nesse bloco a vitória seria muito mais difícil, ou poderia não acontecer. Como tenho insistido, a mídia hegemônica sempre teve lado, e nunca é o de quaisquer projetos progressistas ou reformistas. Nossa história, como até hoje, tem provado isso.


Referências bibliográficas

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RUBIM, Antonio Albino Canelas. “De Fernando a Fernando – Poder e imagem 1989/1994”. Texto apresentado em versão preliminar (e interrogativa) no seminário Política, Cultura e Mídia, na mesa-redonda Mídia e Eleições no Brasil: 1989 e 1994. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 15 de setembro de 1994.

_____. De Fernando a Fernando (II) – “Caleidoscópio mediático-eleitoral 1994”. In Textos de Cultura e Comunicação. Salvador: UFBA, 1995, n. 33.

*Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

*Para acessar o site da Teoria e Debate, clique aqui.


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