26 de outubro de 2013

 

Nunca esqueceremos de Gildo Macedo Lacerda

Depoimento de Oldack de Miranda, na sessão da Comissão da Verdade Rubens Paiva, sob a presidência do deputado Adriano Diogo (PT-SP) da Assembléia Legislativa de São Paulo, realizada em 25 de outubro de 2013.

Dia 22 de outubro de 1973. Apesar da bruma do tempo, eu me lembro. Saia do apartamento à avenida Dendezeiros, na Baixa do Bonfim, em Salvador, e na calçada fui barrado por policiais à paisana. Me deram voz de prisão, me levaram para a Superintendência da Polícia Federal, no Comércio. Antes, subiram ao apartamento no primeiro andar, ensaiaram uma busca, assustaram meus irmãos menores de idade, foram direto ao meu guarda-roupa e descobriram um envelope com textos políticos da Ação Popular. Foi como se eles soubessem de antemão da existência do envelope. Havia mais presos na sala. Lá estavam as jornalistas Nadja Magalhães Miranda e Mariluce Moura, a nutricionista Odívia Rosa e Gildo Macedo Lacerda.

Ofereceram almoço e, pressentindo dias difíceis, aceitei. O agente ainda fez uma observação: “você está muito calmo, normalmente os presos não aceitam o almoço”. Minha aparência era de calma, mas, a angústia, o medo do que poderia vir, um horroroso sentimento de culpa por me deixar prender, envolver a família, o coração saindo pela boca, uma tristeza imensa.  Difícil precisar as horas. Na parte da tarde, um elemento levantou ligeiramente a venda e pude enxergar uma farda verde. Era a sede da Polícia Federal, mas, estava nas mãos do Exército Brasileiro. Passados anos, soube que era o coronel Luiz Artur de Carvalho, Superintendente da Polícia Federal na Bahia. Na verdade, estava nas mãos do DOI/6ª Região Militar, a repressão.
Respondi formalidades e preenchi papéis. Já era noite quando fui levado para o Quartel do Barbalho. Uma construção secular, com celas de paredes úmidas e grades com grossas barras de ferro. Uma cama, colchão e num canto uma lata de querosene como vaso sanitário. Deram-me papéis e queriam que eu escrevesse, nomes, locais, informações de pessoas que eu havia convivido em 1969, 1970, 1971.

Foi uma longa noite. Pela manhã me fizeram atravessar o pátio do quartel. Encapuzado, me empurravam, subi uma rampa e passei a ser interrogado numa sala. Um soldado depois me disse que era o refeitório dos oficiais e o rádio em volume alto era para abafar os gritos, já que havia uma rua vizinha ao quartel. Foi um dia de terror, pontapés, socos, e me fizeram subir naquelas latinhas que cortavam os pés. O primeiro interrogatório não durou muito tempo. Logo me trouxeram de volta à cela medieval. Foi então que vi Gildo Lacerda sendo empurrado, encapuzado, com muita violência, em direção ao pátio, tinha uma ferida no pé muito inchado que o fazia mancar, e eles o empurravam brutalmente para que sentisse dor. Já era tortura a maneira como o empurravam. Reconheci Gildo Lacerda porque eu tinha me encontrado com ele em Salvador, ele próprio tinha me passado os textos da Ação Popular, os dois sentados num banco de jardim no Largo de Roma.
Com o tempo a memória se turva. Não sei mais com exatidão quantos dias fiquei naquela cela do Quartel do Barbalho. Sei que um dia me deixaram tomar banho, vestir roupas limpas, e me obrigaram a entrar num camburão, para a Base Aérea da Aeronáutica, integrada ao Aeroporto de Salvador Dois de Julho. Algemado, com uma blusa cobrindo as algemas, porque havia civis no pequeno avião da FAB, fui levado para Recife. Do aeroporto de Recife, encapuzado, fui transportado no chão de uma Rural-Willis, para uma dependência militar, mantido incomunicável. Até que começaram os interrogatórios, sob tortura. Me dependuraram no pau-de-arara, fixaram  fios em meu saco e ligaram a maquininha de choques. Uma coisa indescritível. Aquilo me fazia abrir a boca involuntariamente e aparentar uma risada. E eles ficavam mais descontrolados. E aumentavam as cargas. “Você nos escapou de falar sobre o Vale do Pindaré-Mirim, mas, agora você vai falar”.

Então, estava eu ali, em outubro de 1973, e estava sendo torturado não para falar de minhas ligações com Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, mas, por pura vingança, queriam que eu falasse de pessoas que eu tinha convivido na mata pré-amazônica do Maranhão de 1969 a 1971. Nem se eu quisesse falar, me lembraria. Passei muito tempo fazendo um esforço brutal para esquecer nomes e locais. Em novembro de 1971, depois de duas malárias e de atendimento médico como indigente, tendo chegado aos limites de minha resistência pessoal, deixei o trabalho camponês do Vale do Pindaré-Mirim, desci para Salvador onde reencontrei meus pais, me mantive na clandestinidade por solidariedade de familiares baianos, tios, primos, até que decidi, em 1972, me apresentar para cumprir os seis meses de prisão a que fora condenado à revelia em Minas Gerais, no mesmo processo que Gildo Lacerda também foi denunciado. Minha mãe havia feito um acordo com um general que tinha sido colega dela de escola, em Barbacena. Fizeram um acordo. Eu me apresentaria para cumprir a pena e iria direto para a Penitenciária de Linhares, Juiz de Fora, sem passar pelo DOPS mineiro. E assim foi feito. Cumpri parte da pena na penitenciária e parte em domicílio dos tios em Barbacena, com a obrigação de me apresentar semanalmente na Delegacia de Polícia. Mas, como estávamos no auge da ditadura militar, havia sempre o risco de me levarem a interrogatório. Então fui exercitando a memória ao contrário, não para lembrar, e sim para esquecer nomes e locais. Funcionou, porque no desespero da tortura no Recife, não conseguindo me lembrar de nomes de militantes camponeses, passei a inventar, descrever pessoas que não existiam com nomes que não existiam, em locais ermos da mata do rio Pindaré-Mirim. Somente não consegui, nem seria possível, esquecer o nome do Manuel da Conceição, o líder camponês do Maranhão, com quem convivíamos, eu e minha companheira, Solange Soares Nobre.
As minhas datas não são precisas. Sei que fui preso em Salvador no dia 22 de outubro de 1973. E sei que ainda nos interrogatórios no Quartel do Barbalho, um dos torturadores me chegou aos ouvidos e disse: “Zé Carlos e Gildo já era”. Isso aconteceu no dia 29 de outubro. Portanto, revendo as datas, quando fui levado de avião da FAB para a tortura, em Recife, já não queriam saber nada de José Carlos da Mata Machado e Gildo Lacerda, que tinham sido assassinados no dia 28 de outubro. Queriam vingança mórbida, por ter eu escapado do IPM de Minas Gerais, por saberem que eu estive no trabalho camponês da Mata da Jaíba e do interrogatório sobre o Vale do Pindaré-Mirim, no tempo da repressão no Maranhão.

Por que depois de passar pelo risco da tortura, me apresentar, cumprir pena, me legalizar, voltei a manter contato com a Ação Popular?
Logo que saí da prisão, recuperei meus documentos pessoais, senti a necessidade de visitar o irmão Nilmário, que cumpria pena de quatro anos em São Paulo. Para ter acesso ao Tiradentes, recorri aos velhos companheiros e colegas de Faculdade de Direito da UFMG, os advogados Joaquim Martins e Anatólio Aranha. Eles me facilitaram o acesso ao irmão, e me passaram um recado. Zé Carlos precisava de minha ajuda. Estava no Nordeste e sempre passava pela Bahia. Em 1973, eu o recebi em meu apartamento, em Salvador, na Baixa do Bonfim. As notícias não eram boas. O cerco da repressão era visível. Havia evidências de que estava sendo vigiado. Ele precisava de ajuda e o ajudei. Ao reencontrar Zé Carlos, antigo companheiro de militância na Faculdade de Direito, encontrei Gildo Lacerda.

Minha história de militância política está ligada à de Gildo e Zé Carlos, ambos assassinados naquele outubro sangrento. Fomos às ruas juntos nas passeatas estudantis contra a ditadura. Eu e Gildo fomos denunciados e incorporados ao IPM dos 37 militantes da Ação Popular, em 1969, famoso em Minas pela violência extremada das torturas nos interrogatórios, principalmente contra as mulheres. Nós dois escapamos do cerco e entramos na clandestinidade. Ocupamos, em momentos diferentes , mas bem próximos, o mesmo aparelho da rua Oswaldo Cruz, 611, no bairro Gameleira, em Belo Horizonte. Nós dois fomos condenados na farsa do tribunal da Justiça Militar da 4ª CJM, sediada em Juiz de Fora. Condenados à revelia, portanto, sem direito de defesa e com base em depoimentos de terceiros, tomados na tortura. O processo, rude e simplório como a ideologia militarista, chegou ao fim em abril de 1972. Estão nos registros: Gildo Macedo Lacerda, 21 anos, codinome Frederico, Fred, foragido, foi o 17º denunciado como dirigente regional da Ação Popular, responsável pelo movimento estudantil. Oldack de Miranda, 24 anos, codinome Vicente, denunciado por tentar sublevar os camponeses da Mata da Jaíba, norte de Minas.
Com tais ligações políticas, foi natural receber em minha casa outro velho amigo de militância em Belo Horizonte, Gilberto Prata, a pedido de sua irmã, Madalena Prata Soares, mulher e mãe dos filhos de Zé Carlos, ela também na clandestinidade.

Acreditei na conversa dele. Prata morava em Salvador porque supostamente tinha tido problemas no casamento e queria se afastar de Goiânia.  Morava na Ladeira da Independência, 54, e passávamos juntos alguns fins de semana. Com minha prisão em 1973, perdemos contato.
Somente em 1984, dez anos depois, quando decidiu confessar sua participação como agente da repressão à caça de Zé Carlos e Gildo, é que fui descobrir a extensão da tragédia. Por solidariedade, acolhera em minha casa um traidor, um sujeito que entregara para a morte seu próprio cunhado. E como fez com seu cunhado, Zé Carlos, entregara para a morte Gildo e ele próprio achava que contribuíra para a captura e morte de muitos outros militantes revolucionários, Paulo Stuart Wrigth, Eduardo Collier Filho, Humberto Câmara Neto, Fernando Santa Cruz, Honestino Guimarães...

Em 1993, estes fatos tornaram-se públicos depois que Gilberto Prata prestou depoimento na Comissão Externa sobre Mortos e Desaparecidos da Câmara Federal. Passei a conviver com este sentimento de pesar e ódio, por ter sido envolvido pessoalmente na trama, porque recebi dentro de uma correspondência familiar, chegada pelos Correios, um pedaço de papel fazendo referência ao número 54 da Ladeira da Independência - o endereço de Gilberto Prata. Na época, dei o alarme, percebi que todos estávamos sendo vigiados, mas logo em seguida veio a operação policial do dia 22 de outubro, com as prisões em São Paulo, Bahia e Pernambuco. Senti muito ódio, mais ódio que medo.
Nunca consegui me libertar desse baixo sentimento. Nunca alcancei a grandeza espiritual do professor Edgard, pai do Zé Carlos, que dissera haver perdoado os assassinos de seu filho. Eu nunca os perdoarei, nunca perdoarei a traição de Gilberto Prata. Sempre me lembrarei do professor Edgard, em cuja residência à rua Alagoas, 716, bairro Funcionários, em Belo Horizonte, eu e Zé Carlos fazíamos reunião do núcleo da AP na Faculdade de Direito da UFMG, planejando a campanha do voto nulo, do Movimento Contra a Ditadura. Isso na casa do deputado federal pelo MDB, Edgard da Mata Machado, eleito em 1966 - um chute na cara da ditadura -, cassado pelo AI-5, em janeiro de 1969.  

Eu me emocionei ao ler a sua mensagem bíblica de despedida ao filho: “Tendo vivido pouco, cumpriu a tarefa de uma longa existência”.  O mesmo podemos todos dizer de Gildo Lacerda.
Agora, 40 anos passados, novamente recorro a uma epígrafe do escritor francês, Léon Bloy, feita pelo mestre Edgard, em entrevista concedida à revista Vozes (1981).
 
Em homenagem aos inesquecíveis companheiros Zé Carlos e Gildo, podemos dizer: “souffrir passe, avoir souffert ne passe jamais”. Sofrer passa, ter sofrido não passa Nunca.

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